Defensores da “PEC da Vida” querem a morte das mulheres
Começo este texto com uma informação que, parece, muita gente não sabe (ou finge que não sabe): o aborto é crime no Brasil de acordo com o decreto-lei nº 2824/1940. O procedimento realizado pela própria gestante ou com o seu consentimento tem pena prevista de três anos de reclusão. Para quem realiza o procedimento, a pena pode ser de quatro anos, o que pode subir para dez caso tenha sido feita sem o consentimento da mulher. Digo isso pelo tanto de manobras legislativas que sempre aparecem para “criminalizar o aborto”.
O “problema” para esses legisladores e legisladoras, é que a mesma lei de 1940 permite, em seu artigo 128, o aborto necessário: se não há outro meio de salvar a vida da gestante; aborto no caso de gravidez resultante de estupro. A anencefalia de fetos foi incluída nas permissões pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012.
Então há apenas três situações que permitem a interrupção da gravidez no país. Permitir é modo de dizer. É de conhecimento público o calvário que meninas e mulheres passam para conseguir realizar o procedimento dentro da lei. Isso se forem pobres, claro. Quem tem dinheiro, faz sem problemas e com segurança, mesmo quando se trata de casos não autorizados pela legislação. Já sabemos o que acontece com quem não tem.
E no último dia 27, em uma manobra que representa um retrocesso histórico nos poucos direitos das brasileiras sobre o tema, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a PEC 164/2012, de autoria do ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ). O texto prevê a alteração do artigo 5º da Constituição, que trata do direito à inviolabilidade da vida. Membro da Assembleia de Deus (ministério Madureira), o ex-deputado, que foi cassado em 2016 por quebra do decoro parlamentar, incluiu “desde a concepção” ao artigo num acenopara agradar a bancada evangélica de então.
A PEC ficou engavetada por anos. Ressuscitou pelas mãos da deputada Chris Tonietto (PL-RJ) e foi incluída na pauta da CCJ pela presidente Caroline de Toni (PL-SC). Sim, mulheres legislando contra o direito das mulheres. A sessão foi tumultuada pela tentativa da bancada da esquerda e de movimentos feministas de barrar a votação. Inútil. Por 35 votos a favor e 15 contrários, o texto, batizado de “PEC da Vida” por seus apoiadores, foi aprovado. E, sim, tivemos o voto de um deputado petista. O nome dele é Flávio Nogueira, do PT do Piauí. E é médico. O próximo passo é o presidente da Câmara, Artur Lira (PP-AL), criar uma comissão para discutir a proposta, que segue para votação em plenário caso seja aprovada.
Os parlamentares favoráveis gostam de se apresentar como cristãos fervorosos e praticantes. Mas que adoram também descumprir o mandamento bíblico de “não usar o santo nome de Deus em vão”. Vejam o que a deputada Simone Marquetto (MDB-SP) disse ao declarar seu voto: “o que eu sou é pró-vida, eu sou católica apostólica romana. O que eu sou é obediente ao autor da vida, que é Deus. Então, eu sou relatora do grande autor da vida”. Ainda bem que Deus não é mais zangado como era no Velho Testamento. Foi por coisas assim que Ele mandou o dilúvio e outras punições e pragas.
A turma favorável à “PEC da Vida” parece não se importar com as estatísticas. Segundo dados oficiais do DataSUS, entre 2018 e 2023, 407 meninas e adolescentes de dez e 19 anos emorreram por complicações na gravidez no País. Destas, 17 tinham entre dez e 14 anos. De acordo com a legislação brasileira, essas gestações foram resultado de estupro de vulnerável. Também de acordo com a legislação, essas meninas teriam direito ao aborto legal. Mas...
Se for aprovado, o texto trará outros entraves no atendimento dos serviços de saúde. Se a mulher estiver sofrendo um aborto espontâneo, que médico realizará o procedimento? Certamente mãe e bebê morrerão. Acha que estou exagerando? Levantamento da agência de notícias ProPublica, dos Estados Unidos, informou ao menos três mortes de gestantes devido à demora no atendimento. Após o endurecimento da legislação sobre o aborto, os médicos decidiram esperar até o cessamento dos batimentos cardíacos do feto para realizar o procedimento. Na espera, as mães morreram.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, a coordenadora-executiva da campanha Nem Preza Nem Morta, Laura Molinari, confirma que a PEC cria uma confusão jurídica para o atendimento de gestações que representem risco de morte para a mulher. Ela usou o exemplo da gravidez ectópica, quando o embrião se fixa fora do útero e que pode ser letal. “Um médico nessa situação não sabe se interrompe a gestação, que é inviável, ou se deixa ela continuar até o limite em que vai romper a trompa, porque não sabe se salva a vida da mulher ou do embrião”. Um exemplo semelhante aos relatados pela agência ProPublica.
Entidades feministas e de direitos das mulheres redigiram um manifesto que apresenta outros problemas. Segundo o texto, a PEC pode impedir o acesso a procedimentos específicos de pré-natal porque os métodos podem ser considerados invasivos contra o embrião, impedindo a detecção de problemas de saúde para a mãe e o feto. Além disso, na prática, a nova redação constitucional criaria dificuldade de acesso a técnicas de reprodução assistida e fertilização in vitro, algo fundamental para quem tem dificuldade de engravidar. É a “PEC da Vida” atrapalhando a vida de todas as mulheres.
Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.