De Karol Eller a Henri Nouwen. Isso não é uma carta póstuma!
Encontrar os limites éticos sobre a espetacularização da dor e do oportunismo de usar o sofrimento e sobremaneira o luto com plataforma de conquista de likes é sempre uma fronteira difícil de pensar para quem produz conteúdo, especialmente sobre temas sensíveis. Até onde se pode “aproveitar o gancho” para fazer um texto ou pensar uma matéria? Qual a fronteira dos vídeos no story como “react de conscientização” e da contagem de visualizações e likes depois que vídeo vai ao ar para saber se valeu a pena o empenho investido? Todas essas perguntas me atravessam enquanto escrevo esse texto, com o silêncio e algumas lágrimas embargadas.
Na última semana tivemos um acontecimento que mobilizou uma enorme discussão nas redes sociais e efervesceu ânimos e mobilizou gatilhos difíceis pra muitas pessoas LGBTI+, especialmente as que vêm do contexto cristão. Karol Eller, uma mulher lésbica, conhecida por sua postura favorável ao ex-presidente Bolsonaro e um forte compromisso com políticos de direita postou em suas redes sociais, durante a madrugada, o local onde estaria seu corpo no momento em que cometeria suicídio. Fazia pouco mais de um mês que Karol manifestou em suas redes sociais sobre ter se convertido e, por se tornar evangélica, passaria a renunciar sua sexualidade “por amor a Jesus Cristo”. Nesse processo de abster-se do exercício pleno de sua sexualidade, a mensagem no story começa dizendo “Perdi a guerra” e após o endereço onde seria encontrado seu corpo, pedidos de perdão um desejo de que as pessoas se cuidem e encerra com a expressão “eu tentei”.
Como pastor assumidamente gay, não tem como essa história não gerar um silêncio que quebra a barreira do som da minha existência e penetra no lugar de profundidade que jamais uma pessoa que não é LGBTI+ poderá entender. Não há esforço compassivo que não me faça atribuir esse evento lamentável de interrupção da vida de Karol Eller ao que ela viveu nesse mês de convertida. O extermínio da “vida física” acontece como consequência da morte espiritual, emocional e existencial com a qual Karol certamente foi golpeada no último mês.
Enquanto continuo escrevendo esse texto me pergunto se devo continuar ou até mesmo se devo publicá-lo. Karol merece ser respeitada e sua família merece direito a um luto sem espetáculo, sem cobranças além do direito de chorar a ausência de sua vida. Até que, enquanto penso em parar, me recordo da fala de Magno Malta que, ao se lamentar pela morte de Karol diz que “Deus preparava um varão para ela” e daí percebo que nossos corpos não tem direito nem quando morremos. Karol não tem direito de morrer como lésbica, sua identidade precisa ser apagada nesse falso discurso de que ela decidiu renunciar sua sexualidade e de que ela não deve ser definida por sua sexualidade, mas sim “por sua identidade de filha amada de Deus”, como costumam dizer as pessoas que estão envolvidas com cura gay. Fico pensando no quanto Karol, depois de dizer que “perdeu a guerra” e de dizer que “tentou” não tem sequer o direito de desistir e ser respeitada em sua escolha. Mesmo após morrer, as pessoas querem decidir por ela, dizendo que Deus tinha preparado um varão para ela. Que tipo de crueldade é essa? Que Deus é esse que estava preparando um homem para viver uma vida infeliz com uma mulher que não sentiria atração sexual por ele? O que Deus vai fazer com esse homem já que o “propósito de Deus” pra esse homem acabou, agora que Karol Eller está morta? Então Deus não sabia que ela iria morrer e estava preparando um homem para ela achando que ela ficaria viva? Deus perdeu o controle da situação? Que tipo de consolo pra uma família enlutada ou que tipo de “ensinamento” se oferece ao dizer em sua rede social com mais de 1 milhão de seguidores em outras palavras que se você tivesse persistido ao sofrimento e série de violências que você estava vivendo, Deus iria te dar como prêmio uma pessoa para que todo mundo visse que você deixou de ter a identidade que tinha? Qual é o grande aprendizado por trás dessas palavras? Há algo que devemos aprender com a morte de alguém?
É claro que todas essas perguntas são meramente retóricas e muitas delas eu mesmo consigo sacar da memória (da época que eu era fundamentalista e conservador) respostas fáceis e empacotadas que recebi no “fast-food” da fé, igual um lanche de hambúrguer padronizado que não importa em que lugar do país eu esteja e não importa quem esteja cozinhando, ele sempre vai ser o mesmo. Esse é o jeito que essa máquina opera e que esse projeto de poder massacra os corpos. Sempre há uma resposta, sempre há uma justificativa. Karol Eller agora é apenas mais uma resposta rápida e fácil como relacionar sua morte a qualquer coisa que não as torturas psicológicas que talvez ela tenha vivido desde sua “conversão”. É mais fácil acreditar e afirmar que “vida de abusos causou a morte de Karol Eller”, como disse Michelle Bolsonaro e ter esse argumento empacotado, pronto e passivamente aceito sem qualquer tipo de crítica, do que pensar numa relação básica de causa e efeito da conversão, das palavras escritas em seu story e das várias coisas que sabemos que acontece com uma pessoa LGBTI+ quando ela “renuncia” sua identidade em nome da fé evangélica.
O silêncio que faz enquanto escrevo se interrompe com a necessidade que tive de tirar os óculos porque as lágrimas atrapalham minha leitura da tela e consequentemente um pouco minha escrita e depois de levantar, espairecer, respirar e me sentar novamente para tentar escrever, percebo que talvez a função de escrever o texto aqui (a despeito de todas as contradições que escrevê-lo imperam e das quais deflagrei com integridade diante de você, pessoa que está lendo) sinto que se há alguma possibilidade íntegra de se fazer permitir trazer essa pauta como exercício de reflexão pública, a encontro quando percebo que não é como se tivesse que escrever uma carta póstuma ou apenas manifestar o meu lamento e ira diante dessas violências que se findam no campo da subjetividade e incertezas, mas diante disso convidar você, pessoa que está me lendo a saber que romantizar o sofrimento nunca foi e nunca será o desejo de Jesus e o objetivo de Sua conquista na vitória sobre a morte na cruz.
Sempre me recordo da história do famoso teólogo Henri Nouwen, que era um padre católico holandês que decide renunciar sua sexualidade (que não era heterossexual) para viver uma vida casta e em dedicação ao ministério e que o sofrimento que passou e viveu diante disso lhe custou escritas e livros que são inspirações na espiritualidade de muitas pessoas, inclusive pra mim. Quando eu ainda não me aceitava, lembro do quanto as pessoas comentavam sobre a bravura e beleza da vida e ministério de Henri e o quanto sua canalização da abstenção da sexualidade se converteu em um repertório de espiritualidade que fazem acreditar que seu sacrifício valeu a pena e que a eternidade de seu legado é prova cabal de que essa jornada é sempre um sucesso. Em seu livro “Transforma meu pranto em dança”, Nouewn escreve uma frase que durante os anos de 2015 e 2016 foi um marco na minha peregrinação contra a fase depressiva e com ideações suicidas (e tentativas) que tive. Em determinado momento do livro o Padre diz que “a vida cresce em plenitude através da espera e, frequentemente, do sofrimento” e eu lembro que por muitas madrugadas orei pedindo pra que Deus desse sentido ao meu sofrimento infindável. Aprendi a acreditar que sofrer poderia ter uma validação concreta no fato de que eu estava crescendo e de que atravessar o sofrimento me seria como uma escola e que colheria, nem que fosse na glória, um tipo de gratificação (ou galardão) como recompensa por ter colocado o sofrimento nesse lugar romântico de crescimento.
Vários foram os momentos em que eu pensei em escrever e até rascunhei cartas póstumas ao Henri Nouwen em muitos tipos diferentes de humor e de relação com essa frase e em várias delas, por um bom tempo senti e quis expressar na carta póstuma um sentimento de profunda gratidão porque não me aceitava e achei que não me aceitar e renunciar, como Karol Eller fez, seria o melhor caminho e que “valeria a pena aguentar o sofrimento”. Em determinado momento da minha trajetória quis colocar o tom de raiva e revolta por toda a vida e produção do Padre Henri porque hoje ele nem deve saber de como seu nome é utilizado como instrumento de romantização da cura gay e que preferia que ele não tivesse escrito as coisas que escreveu. Atualmente minha relação com essa frase é sempre abraçando a complexidade e entendendo que a vida (e consequentemente o sofrimento) não são uma receita de bolo e de muitas vezes, algumas pessoas vão, como em suas próprias palavras, “tentar” mas vão “perder a guerra” e que, por isso, os sofrimentos que nos devem e podem ser utilizados como representações do crescimento em plenitude devem ser apenas aqueles que nos são inevitáveis.
Enquanto acharmos que o discurso do “sofrimento como escola” for justificativa para perpetuar violência e opressão na vida das outras pessoas, estaremos inclusive jogando o legado do próprio Nouwen fora e sendo indignos com sua vida e ministério. Queria muito que ele soubesse que a mesma medida e intensidade com quem celebro e honro seu legado e os livros que escreveu, bem como sua trajetória de dedicação ao que acreditava, tenho profundo lamento pelos sofrimentos que lhe foram impostos e pela vida de sofrimento que lhe outorgaram sem que ele tivesse a oportunidade de ser livre.
Diante das palavras que me custam a escrever nesse texto, o que me ocorre de falar com você, que está lendo esse texto, é que nós precisamos encarar a interrupção de vida de Karol Eller como uma denúncia de que há várias pessoas em sofrimentos compulsórios, causados pelas igrejas e que romantizam estarem “em uma guerra” que Jesus não pediu que vivessem e que inclusive Jesus venceu em Sua vitória sobre a morte. Não podemos mais tolerar que a renúncia da identidade LGBTI+ seja tratada como única alternativa de vida da experiência de fé cristã. Isso é perverso, doloroso e tem matado muita gente. E é uma morte que “não gera provas” e que pode facilmente ser desviada da responsabilidade de quem a gera, uma vez que a vida violada não terá direito de defesa e voz por si só e de que as pessoas vão usar isso a seu favor para falarem as atrocidades que quiserem.
Vários são os versículos bíblicos que me ocorreram de citar neste texto e confesso que até pensei em fazê-lo para trazer uma pretensa robustez para quem lê não achar que é mera filosofia, mas de tudo o que posso tentar reivindicar para concluir esse texto que talvez tenha sido o mais difícil do ano, me resta confirmar o que a bíblia diz em Romanos 8 quando afirma que “³⁸Pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, ³⁹nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.” (Romanos 8: 38-39, NVI). Nem a morte, nem o que tentarem dizer diante da morte de Karol será suficiente para separá-las do amor de Cristo e por isso, qualquer tentativa desleal de regulação sobre a possibilidade do seu corpo (vivo ou morto) acessar o Cristo, só pode ser fruto do maligno.
Quando fiz meu trabalho de conclusão de curso no Bacharelado em Geografia na UFPR, na dedicatória da página 4, escrevi uma frase que se faz cada vez mais viva em momentos de deflagração da violência como esses:
“Dedico este trabalho a cada jovem LGBTI+ que está dentro do armário que a igreja evangélica os colocou, tal qual estive um dia. Enquanto vocês não puderem sair, continuarei gritando vossos nomes! Vocês são “Imagem e Semelhança” de Deus!”
Bob Luiz Botelho é membro Associado das Nações Unidas para assuntos de Religião (UN Religion Fellow) agenciado pelo CONIC e pela OutRight International. Estudante e pesquisador em Geografia da Religião pela UFPR, é teólogo de formação pentecostal e batista, tendo raíz e formação presbiteriana com uma passagem pelo adventismo. Fundador do Evangélicxs pela Diversidade, a primeira iniciativa evangélica e LGBTI+ da sociedade civil na América Latina, atuando na OEA e sendo o primeiro LGBT+ assumido a ser membro pleno da FTL (Fraternidade Teológica Latinoamericana). Reverendo pela IADLA-Brasil (Iglesia Antigua de Las Américas), é pastor na Comunidade MESA em Curitiba. Atuou por 7 anos em diversas organizações missionárias, onde estudou e deu aula de Missiologia e Missão Integral. Biblista formado pelo CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), é professor de Exegese, Hermenêutica e Teologia Queer. Instagram: @bob.luizbotelho Youtube: youtube.com/@bobluizbotelho Contato por https://taggo.one/bob.luizbotelho