Cultura religiosa, classe e gênero no voto evangélico
A reflexão sobre o voto evangélico exige, por um lado, atenção às sensibilidades e aos códigos que fundamentam o pentecostalismo, e por outro, atenção aos políticos e aos líderes religiosos que aproximam a expressão da fé do direitismo político.
Para contribuir com o debate sobre o chamado voto evangélico no Brasil de hoje, gostaria de explorar dois pontos. O primeiro deles remete ao domínio da cultura e das sensibilidades, já o segundo consiste essencialmente em um problema de classe e gênero. Considerando que o debate a respeito do chamado voto evangélico tem sido muitas vezes contaminado por juízos fantasiosos sobre a base evangélica da sociedade e sobre qual seria o voto esperado dessa base, acredito que a elucidação desses dois pontos seja um movimento reflexivo importante para situarmos a questão de modo mais criterioso.
Uma abordagem sobre o fenômeno do pentecostalismo empreendida na esfera daquilo que se pode chamar de um domínio da cultura e das sensibilidades demanda a compreensão de uma mudança significativa verificada na religiosidade popular no Brasil contemporâneo, algo que ocorreu de modo mais acentuado a partir dos anos 1990. Como ponto de partida, para se estabelecer adiante um efeito de contraste, faço menção à definição de cultura popular urbana tradicional formulada, naquele contexto, pelo antropólogo franco-brasileiro Joseph François Pierre Sanchis. Essa cultura seria caracterizada como possuindo “pouco rigor moralista, pouca disciplina cívica e por apresentar uma tendência para um esforço laboral anárquico, isto é, a ausência de uma disciplina orientada para o trabalho; pelo ponto de vista religioso, essa cultura se caracterizaria por uma porosidade no modo como são constituídas e vivenciadas as identidades que possibilita uma participação simultânea em definições institucionais múltiplas”.
Proponho confrontarmos essa formulação de Sanchis com o modo como a religiosidade pentecostal se enraizou no Brasil. De fato, quando observamos o mapa do crescimento evangélico através dos dados disponibilizados pelo IBGE, verificamos que esse crescimento se deu majoritariamente no meio urbano. Mais do que isso. Quando observamos as regiões da cidade que concentram os segmentos evangélicos, constatamos que elas correspondem, principalmente, às favelas e às periferias. Esse crescimento na vinculação institucional à religiosidade pentecostal observado nas periferias das grandes cidades consiste num fenômeno de grande impacto cultural. Contudo, gostaria de chamar a atenção, ainda, para implicações dessa transformação na emergência de um processo mais amplo de partilha de valores morais de referência. Mais amplo porque hoje verificamos o aumento no número de pessoas formadas em lares evangélicos, que cresceram em comunidades onde a presença da igreja se faz sentir de múltiplas formas, inclusive por meio de sua presença concreta, estética e sonora. Falo de pessoas que não frequentam as igrejas, necessariamente, mas que partilham alguns dos valores que compõe a visão de mundo evangélica, sobretudo em sua face pentecostal. Isto é, o processo de crescimento das igrejas evangélicas nas periferias das grandes cidades aponta para uma partilha de valores morais de referência que abarcam tanto os fiéis de uma denominação, quanto aqueles que não estão vinculados a nenhuma igreja em especial, não têm uma vida institucional religiosa, mas que são sensíveis à gramática e às doutrinas professadas no pentecostalismo.
Tais valores partilhados, que contemplam expectativas, medos, visões de mundo, reportam também, é verdade, a outras matrizes religiosas presentes nesses espaços, uma vez que o pentecostalismo não figura neles como uma religiosidade exclusiva. De alguma forma, as práticas das igrejas evangélicas se abrasileiraram, como disse Sanchis. Observamos um pouco disso na convivência e na assimilação de outras formas religiosas como as de matriz afro. Ao mesmo tempo, ao experimentar esse processo de abrasileiramento, o pentecostalismo não promoveu aquilo que era uma expectativa de muitos especialistas, a saber, uma onda de modernidade e civilidade, embora seja inegável o fato de que as relações comerciais, sociais, econômicas, familiares e políticas tenham sofridos transformações significativas em função do modo como elas foram atravessadas pelo crescimento evangélico. Seja como for, seria mais correto falarmos então de valores sintetizados a partir de uma variedade mais ampla de referências culturais, mas que têm hoje, no pentecostalismo, uma referência dominante.
Diante da definição de cultura popular urbana de Pierre Sanchis, temos então que o crescimento da influência pentecostal na sociedade brasileira de modo geral, e sobretudo nas periferias das cidades, leva-nos a definir uma nova forma de “cultura pentecostal urbana”. Essa forma pode ser caracterizada por meio de cinco componentes:
1) A valorização do empreendedorismo e da disciplina para o sucesso como resultado de diferentes influências dentre as quais destacaria a Teologia da Prosperidade e a Confissão Positiva.
2) A percepção de que o esforço pessoal produz vitórias. A respeito dessa ideia, acho importante destacar que, em contextos sociais de vulnerabilidade, nos quais o Estado oferece precariamente seus serviços, contar consigo mesmo e com as redes mais próximas e orgânicas de vizinhança e parentesco sempre foram um recurso para a sobrevivência. Embora essas redes sejam ativadas quando disponíveis, prevalece a ênfase na crença do esforço individual como modo de superação das adversidades.
3) A valorização moral da família nuclear e dos papéis de gêneros definidos entre homem e mulher. Importante notar que essa valorização da família nuclear se realiza no bojo da valorização de uma meritocracia e de um processo de individuação.
4) Uma diminuição naquilo que Pierre Sanchis chamou de porosidade das identidades com uma apresentação de si como evangélico, ainda que sínteses religiosas possam ser observadas em um número crescente de casos.
5) Um amplo uso cotidiano de metáforas que remetem à guerra, disputa, atribulação. Ou seja, todas formas inspiradas em uma Batalha Espiritual, na Teologia do Domínio, perspectivas que marcam fortemente as doutrinas e liturgias de igrejas pentecostais.
De que forma a abordagem do fenômeno evangélico nesses marcos das culturas e das sensibilidades urbanas periféricas é relevante para pensarmos a questão mais específica da política e do chamado voto evangélico nas eleições?
Acredito que políticos alinhados à direita, não exclusivamente eles, mas principalmente eles, vêm de modo bastante engenhoso transformando a linguagem religiosa, isto é, os códigos gramaticas, estéticos e de valores que expressam uma cultura e as sensibilidades evangélicas em uma linguagem política. O que chamamos hoje de nova direita, por exemplo, surgiu empregando esse tipo de tática. A mensagem que esses grupos políticos trazem é a de que o cristianismo é de direita, é fundamentalista. Dito de outra forma, tais grupos se apropriam de uma determinada gramática, de questões como a autoridade, a família, a afirmação dos papéis de gênero, com o objetivo de estabelecerem conexões com as bases sociais. Esses grupos sabem, portanto, que ao empregarem em seus discursos o vocabulário que orienta o sentido das práticas pentecostais, eles acabam por alcançar os corações e as mentes de um segmento social expressivo que inclui aqueles que estão institucionalmente engajados nas igrejas e aqueles que, mesmo sem o engajamento prático, partilham de um repertório de sensibilidades fortemente orientado pela religião.
O segundo ponto que gostaria de considerar põe em evidência os recortes de classe e gênero. Conforme dados divulgados agora em junho por uma pesquisa de intenção de voto conduzida pelo Instituto Datafolha, o atual presidente da República só supera seu principal adversário, Lula, entre a parcela do eleitorado que ganha mais de dez salários mínimos e entre empresários. Entre esses, a preferência por Jair Bolsonaro alcança a marca de 56%, contra 23% da preferência por Lula. Esse recorte de classe importa para situarmos o problema do chamado voto evangélico na medida em que, dentre os grupos que compõem o empresariado que manifesta preferência por Bolsonaro, encontram-se os líderes evangélicos midiáticos. É importante recordarmos que várias lideranças e grupos à direita abandonaram a base de sustentação de Bolsonaro logo nos primeiros meses de seu mandato e que muitos outros antigos apoiadores saíram durante a pandemia, como a própria ANAJURE (Associação Nacional de Juristas Evangélicos), que foi uma apoiadora de primeira ordem. Um grupo, no entanto, manteve-se ali, possivelmente motivado por uma questão não religiosa. Afinal, estamos falando em um empresariado ligado aos mercados televisivo, fonográfico e editorial gospel, assim como ao ramo imobiliário, ao mercado de terras, ao comércio e que, por isso mesmo, está interessado nas promessas e no tipo de gestão do atual governo.
Especificamente no que diz respeito ao gênero, a rejeição das mulheres ao voto em Bolsonaro é uma questão importante de ser ressaltada. As mulheres compõem o segmento da população mais precarizado do ponto de vista econômico, além de serem as principais usuárias de políticas públicas. A rejeição desse grupo ao voto em Bolsonaro passa, portanto, pela maneira como as políticas públicas foram, ou melhor, deixaram de ser conduzidas durante o atual governo, conforme a precarização de programas de transferência de renda, educação e saúde, para jovens e adultos, ilustra.
A reflexão acerca do chamado voto evangélico proposta aqui explorou duas dimensões do mesmo fenômeno. Primeiramente, vimos de que forma os códigos pelos quais se expressam à fé, os valores e as sensibilidades evangélicas veem sendo apropriados por políticos à direita. Tais líderes se comunicam com as bases sociais a partir de elementos estruturantes da chamada teologia do domínio, também conhecida como batalha espiritual, uma teologia cujo fundamento imagético e narrativo se expressa por meio de uma oposição binária entre o bem e o mal. A essa batalha do bem contra o mal se interpõe outra emoção, bastante presente no cristianismo como um todo, que é o sentimento de perseguição. Essa emoção e a ideia que ela carrega ajuda a explicar porque, muitas vezes, as críticas feitas à Presidência da República e aos seus aliados tendem a ser vistas pela direita cristã, cuja visibilidade de pentecostais é grande, embora esse grupo seja composto também por católicos e protestantes, como confirmação do exercício de uma batalha do bem contra o mal. Nesse sentido, a crítica da mídia confirmaria a ideia da perseguição. Num segundo momento, quando foram considerados os recortes de classe e de gênero, observou-se que a despeito do interesse do empresariado de líderes midiáticos pela reeleição de Bolsonaro, a experiência de desamparo pela qual a sociedade, sobretudo os mais vulneráveis economicamente, vem passando nos últimos anos, ajuda a compreender, talvez mais até do que a religião tomada como um fato isolado, a rejeição ao atual governo, observada com maior incidência entre as mulheres.