Criticar o Sagrado do Outro é um Direito Fundamental

Criticar o Sagrado do Outro é um Direito Fundamental

O amigo Juliano Spyer levantou uma importante interrogação em sua coluna na Folha de São Paulo, no último dia 21 de agosto. No subtítulo do artigo: “Direito brasileiro não sabe como lidar com ofensas à religião,” e no texto, uma pergunta que reflete muito bem a reticência contemporânea diante de algumas liberdades fundamentais: “Qual é a fronteira entre o direito à crítica, que deve ser protegido, e a ofensa, que precisa ser regulada?”

Por pura coincidência, enquanto o Dr. Spyer publicava o seu artigo, o pastor Jack, líder da Igreja Vintage em Porto Alegre, blasfemava nas mídias sociais e respondia a acusações de intolerância religiosa, por afirmar que religiões afro, budismo e islã seriam “satânicas” e “demoníacas”. A revista Forum publicou uma matéria denunciando “discurso de ódio” e incompreensão dessas religiões por parte do pastor Jack. Denúncia compreensível, mas tortuosa: o pastor Jack e a Forum não trabalham com a mesma definição do que seria o “demônio” e, muito menos, de como exorcizá-lo.

A questão é recorrente em nosso Brasil pluralíssimo e religiosíssimo. Em 2019 o grupo Porta dos Fundos produziu para o Natal uma peça de humor profundamente ofensiva ao sentimento religioso cristão, mas o direito à ridicularização da fé foi afirmado hegemonicamente pelo estabelecimento jornalístico. Eu mesmo escrevi à época na Gazeta do Povo defendendo o direito à crítica do sagrado, independente da qualidade da “obra”.

Isso não significa que qualquer forma de discurso antirreligioso seja admissível. No começo do ano de 2019 o Ministério Público do Estado da Bahia se pronunciou sobre um caso particularmente chocante, alguns meses depois explorei a questão do ponto de vista do Sistema Internacional de Direitos Humanos num artigo para a Gazeta do Povo: “Criticar o sagrado do outro é errado? Viola os Direitos Humanos?” (publicado em 28/04/2020). O artigo tem relevância direta para a pergunta do Spyer e a posição do pastor Jack, e me motivaram a republicá-lo nessa coluna, com pequenas alterações.

Dessa vez, no entanto, meus interesses são menos diplomáticos. Desde que o estado e a imprensa andam preocupados com Satanás e seus demônios, serei, por um momento, o advogado do “diabo”.

Discurso de ódio

Supostas declarações proferidas pelo agressor, direcionadas à vítima, como “macumbeira tem que morrer, sapatão tem que morrer, homossexualismo tem que morrer, feiticeira tem que morrer, que a casa da declarante é o ponto do demônio”, referindo à religião de matriz africana como “negócio do satanás e legião de nigrinhas”, em tese, manifestam grave preconceito e ódio por motivo religioso e de orientação sexual (Ministério Público do Estado da Bahia, Recomendação de 27 de janeiro de 2019)

As declarações feitas por um pastor evangélico com apoio de membros de sua igreja em Vitória da Conquista motivaram a edição, pela promotora de Justiça Guiomar Miranda de Oliveira Melo, de uma recomendação aos líderes e entidades religiosas do município, para que “se abstenham de praticar condutas caracterizadoras de discriminação e intolerância religiosa ou por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero, por meio de manifestações e atos dirigidos a determinado grupo ou coletividade ou a uma única pessoa, sob pena de responsabilização nas esferas civil e criminal.” O MP requisita também providências das instituições religiosas diante da recomendação.

A declaração causou repulsa, como clara manifestação de desprezo pela vida e desconsideração pela dignidade e reputação de seres humanos, combinando em uma fala curta uma diversidade de ódios. Ao mesmo tempo, o MP enquadra e problematiza a declaração de que a religião da ofendida seria “negócio do satanás”, a qual não é um gesto contra qualquer pessoa, per se, mas contra o fenômeno de segunda ordem que é o culto religioso. Mas... cabe ao Estado julgar o que é ou não é “do demônio”?

O Sistema Internacional de Direitos Humanos construiu, a duras penas, uma resposta a essa questão: a crítica ao sagrado do outro não viola os direitos humanos. Mas conto com a paciência do leitor – o argumento é longo, mas necessário.

A ascensão do “combate à difamação da religião”

Em novembro de 2020 estive no 7º encontro do Processo de Istambul, sobre o tema “Combatendo a Intolerância Religiosa”, em Haia, nos Países Baixos, e tive a oportunidade de conhecer alguns dos protagonistas de um capítulo ainda inconcluso da história dos direitos humanos: a relação entre os artigos 18 e 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (DUDH), que reproduzimos abaixo:

Artigo 18: Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

Artigo 19: Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.

O problema pode ser posto de forma muito simples: a liberdade de religião ou crença estabelece algum limite para a liberdade de opinião e expressão? Quando é que a crítica à crença ou prática religiosa do outro transgride o limite da liberdade de expressão e se torna um gesto de violência à identidade de outrem?

Mas antes de discutir a minha experiência em Haia no ano passado, precisamos voltar no tempo para vários anos atrás, até abril de 1999. Nessa ocasião o Paquistão, em nome da Organização da Conferência Islâmica (que se tornaria a Organização pela Cooperação Islâmica, ou OIC), apresentou à Comissão dos Direitos Humanos da ONU uma resolução intitulada “Difamação do Islã”, logo modificada para “Difamação das Religiões”. A resolução pedia a todos os Estados membros medidas para combater o ódio, discriminação, intolerância e atos de violência motivados pela intolerância religiosa. A motivação, segundo se sabe, era coibir as manifestações de preconceito contra o Islã que vinham se multiplicando no mundo, pela associação dessa religião com o terrorismo internacional.

Versões revisadas e atualizadas dessas resoluções foram apresentadas anualmente e adotadas pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, com o tema do “Combate à Difamação das Religiões”, mas com crescente resistência dos EUA e da União Europeia. A chama da resistência se acendeu por conta do clima hostil contra Israel na Conferência de Durban, em 2001, sendo a resolução aprovada com 28 votos a favor e 15 contra, com nove abstenções. Depois disso as opiniões se dividiram com a resposta dos EUA ao ataque da Al Qaeda em 11 de setembro de 2001, a Intifada palestina em Israel, e as invasões americanas no Afeganistão e no Iraque. Dali em diante essas resoluções foram apresentadas todos os anos até 2005 – sete vezes –, encontrando crescente resistência dos EUA e dos europeus.

Em agosto de 2005 o tema subiu novamente para a 60.ª Assembleia Geral da ONU, por iniciativa do Iêmen, e a nova resolução expressou preocupação com as consequências continuamente negativas do 11 de Setembro sobre minorias islâmicas em países não islâmicos, com leis discriminatórias, preconceito e estereotipificação negativa. A resolução passou com 101 votos a favor, 53 contra e 20 abstenções. Mas no mesmo ano, pouco mais de um mês depois, explodiu a famosa “crise das charges de Maomé”, com 12 charges editoriais publicadas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten em 30 de setembro de 2005 representando o fundador do Islã. O gesto foi considerado blasfemo por muitos muçulmanos, gerando questionamentos em embaixadas e uma escalada de violência, ataques a missões diplomáticas europeias, protestos, ataques a cristãos e mais de 250 mortes até 2006. O então primeiro-ministro dinamarquês, Anders Fogh Rasmussen, chegou a descrever a controvérsia como o pior incidente de relações internacionais do país desde a Segunda Guerra Mundial. A temperatura do debate sobre liberdade de expressão versus difamação da religião tornou-se altíssima.

Com a reestruturação da Comissão de Direitos Humanos como Conselho de Direitos Humanos da ONU (UNHRC), em 2006, houve uma mudança importante na composição de votos, com os membros da Organização para a Cooperação Islâmica, a Liga Árabe e os Estados não alinhados constituindo a maioria do Conselho. Assim, outra resolução foi apresentada com mesmo teor à Assembleia Geral, com foco na crescente discriminação contra minorias muçulmanas, recebendo apoio, surpreendentemente, de China e Rússia. Mas um passo importante foi a aplicação do artigo 20 do Pacto Internacional pelos Direitos Civis e Políticos à difamação das religiões.

No ano seguinte, o assunto retornou, como de costume, e a relatora especial da liberdade de religião ou crença, Doudou Diène, denunciou a “islamofobia” e pediu especialmente por um equilíbrio entre secularismo e respeito à religião, apontando na cultura antirreligiosa uma fonte central de difamação da religião. E, em dezembro do mesmo ano, novamente a Assembleia Geral aprovou uma resolução sobre o combate à difamação religiosa, a despeito das falas contrárias da Alemanha (em nome da UE) e do Canadá, preocupados com a ênfase na islamofobia e o esquecimento das outras crenças.

O Parlamento Europeu já havia passado em 2006 a Resolução 1.510, sobre “liberdade de expressão e o respeito pelas crenças religiosas”, na qual leis de blasfêmia foram explicitamente reprovadas, afirmando que “a disputa crítica, a sátira, o humor e a expressão artística (...) deveriam desfrutar de maior grau de liberdade de expressão e o recurso ao exagero não deveria ser visto como provocação”, e que a liberdade de expressão “não deveria ser restrita para se adequar às sensibilidades crescentes de certos grupos religiosos. Ao mesmo tempo a Assembleia enfatiza que o discurso de ódio contra qualquer grupo religioso é incompatível com os direitos e liberdades fundamentais garantidos pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos”. Em 25 de janeiro de 2007 foi passada a Resolução 1.535, sobre ameaças a jornalistas por fundamentalismo religioso.

Em março de 2008 o debate esquentou com a nova resolução do UNCHR contra a difamação da religião. O texto foi emendado de surpresa, de modo a sumarizar sob o artigo 20 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos os casos de abuso da liberdade de expressão, estabelecendo um paralelo entre a limitação da liberdade de expressão, no caso de racismo, e semelhante limitação no caso da incitação ao ódio religioso. Positivamente, a relatoria sugeriu o abandono da expressão “difamação de religiões” por uma linguagem juridicamente mais sólida de “incitação ao ódio nacional, racial ou religioso”.

A resposta foi rápida e enérgica: associações como Repórteres sem Fronteiras reagiram, e com eles um total de 40 organizações apresentando petição contrária, e 12 países rejeitaram a emenda. A UE acusou a OIC de distorcer o sentido da liberdade de expressão. Estava claro para todos no Ocidente que o movimento promovido pela OIC trazia consigo uma grave ameaça para a liberdade de expressão e para a liberdade de todas as minorias religiosas em países islâmicos. Mesmo assim a resolução passou com o nome tradicional, embora com muito menos votos, proporcionalmente.

A Revolta

Em resposta, o Parlamento Europeu aprovou a Recomendação 1.805 sobre blasfêmia, insulto religioso e discurso de ódio contra indivíduos, baseada em suas religiões, em junho de 2008. O relator Sinikka Hursainen negou que o insulto religioso ou difamação de religião fosse ato criminoso segundo as normas da ONU, afirmando que comentários de conteúdo religioso só seriam puníveis se com clara intenção de causar distúrbio e incitar à violência. A assembleia estabeleceu, então, que a legislação europeia deveria ser revisada para garantir que a blasfêmia ou insulto a uma religião jamais fosse considerada ato criminal. O desconforto da UE evoluiu para uma negativa clara e límpida.

No principio de 2009 havia calma aparente, com a disposição da OIC de remover o tema da difamação das religiões de sua intervenção na Conferência sobre o Racismo que ocorreria em abril, em Genebra (do contrário, a UE e o Canadá não participariam). Mas em fevereiro o Paquistão insistia em acusar a difamação da religião como fonte de violência, e na necessidade de estabelecer limites à liberdade de expressão. No mês seguinte mais de 200 organizações da sociedade civil de vários países e religiões, incluindo grupos ateístas humanistas e seculares, pressionaram o Conselho de Direitos Humanos da ONU a rejeitar qualquer resolução contra a difamação da religião. Entre os signatários estava a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Uma petição foi assinada por várias ONGs e pelo congressista republicano Trent Franks, que declarou numa conferência internacional de liberdade religiosa, no Congresso dos EUA:

“O conceito de difamação das religiões foi representado como uma proteção à prática religiosa e à tolerância, mas na realidade pavimenta o caminho para a intolerância. Ele dá a extremistas religiosos e a governos repressivos o direito de suprimir qualquer crítica da religião dominante. Em muitos países que apoiam esse conceito, a difamação e crítica ao Islã e a blasfêmia são ofensas puníveis.”

Recuo e teimosia

Como resultado inicial, a resolução de 26 de março de 2009, embora mantendo a linguagem da “difamação das religiões”, assumiu tom conciliatório e destacou a complementaridade das liberdades incorporadas nos instrumentos internacionais de direitos humanos. Mesmo assim, o largo consenso que costumava ser obtido para tais resoluções falhou, com vários países desistindo de apoiar a resolução. E o conceito recebeu mais críticas; em julho o relator especial para formas contemporâneas de racismo, discriminação, xenofobia e intolerância recomendou o abandono do conceito de “difamação das religiões”, em nome da norma legal reconhecida da “não incitação ao ódio nacional, racial ou religioso”. À época a Folha de S .Paulo criticou a resolução com a interessante chamada “Adeus Voltaire”. Logo críticas acadêmicas ao status e aos usos políticos do conceito, associadas a instituições como The Beckett Fund for Religious Liberty, começaram a se estabelecer.

Em 30 de setembro, na 12.ª sessão do UNHRC, os EUA, com apoio do Egito, introduziram uma resolução condenando a “estereotipificação racial e religiosa”, buscando um caminho novo. Mas os países islâmicos insistiram na criminalização da islamofobia. O representante da UE, Jean-Baptiste Mattei, declarou que a União “rejeitava e continuaria a rejeitar o conceito de difamação das religiões”, e que “direitos humanos não protegiam nem deveriam proteger sistemas de crença”. Em outubro, na reunião do Comitê Ad Hoc do Conselho de Direitos Humanos para revisar medidas de implementação, a batalha recrudesceu. Os EUA caracterizaram a “difamação da religião” de “conceito fundamentalmente falho”, a UE afirmou que o sistema internacional protege pessoas, não instituições ou religiões, e a França repetiu que a UE não oferece proteção legal a sistemas de crença.

Ao mesmo tempo, a OIC deixou claro que não abandonaria o conceito de “difamação da religião”. Em uma carta ao comitê, afirmou que a santidade de todas as religiões deveria ser reconhecida, e atribuída às suas personalidades religiosas, símbolos e seguidores. E em 29 de outubro, o 3º comitê da ONU (Social, Humanitário e Cultural) aprovou uma resolução intitulada “Combatendo a difamação das religiões”. Vale destacar que, a essa altura, o Brasil declarou que o conceito de “difamação da religião” parecia em desacordo com outros direitos, e optou pela abstenção de voto.

Chegamos, então, a março de 2010, com o Paquistão se apresentando em nome da OIC, pela 12.ª vez, para empurrar sobre a assembleia uma resolução intitulada “Combatendo a difamação das religiões”. A UE e os EUA rejeitaram totalmente o conceito, que estaria em conflito com a liberdade de expressão e se prestava a justificar a opressão de minorias religiosas e restrição de liberdades. A resolução passou, mas com pouca margem: ganhou por apenas três votos.

A Queda

Novos ventos da história sopraram em 2011, no entanto, fazendo cair o já frágil edifício erigido pela OIC. No princípio do ano a Primavera Árabe levou a um temporário florescimento da luta pelas liberdades civis e políticas, de expressão, e a pressões por direitos sociais e luta contra a corrupção. Constatou-se que uma nova resolução sobre a difamação das religiões seria derrotada no Conselho. E com isso a OIC finalmente retirou de campo a sua tese histórica, aceitando uma formulação completamente diferente do problema, na qual a proteção de crenças religiosas cederia seu lugar para a proteção dos crentes – ou seja, de pessoas. O evento foi corretamente considerado uma vitória para a defesa da liberdade religiosa.

A Resolução 16/18 de 2011 e o “Processo de Istambul”

Em Haia, 20 anos depois da tese da “difamação da religião”, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente os negociadores do Departamento de Estado dos EUA e o representante da OIC que elaboraram conjuntamente a nova solução para o problema da discriminação contra minorias islâmicas, estabelecendo uma nova era na compreensão da complementaridade dos direitos humanos. A Resolução 16/18, “Combatendo a intolerância, a estereotipificação negativa e a estigmatização, discriminação, incitação à violência e a violência contra pessoas, com base em sua religião ou crença”, foi apresentada pelo Paquistão e aceita por unanimidade na 16.ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, como etapa de implementação da Declaração de Durban, em 24 de março de 2011.

A tonalidade da declaração é claramente conciliatória, afirmando a plena liberdade de opinião e expressão e a manifestação pública de seu culto, assim como garantindo a proteção a pessoas ou seguidores de qualquer religião contra a projeção, caracterização ou estereotipificação negativa dessas pessoas com base em suas religiões ou crenças, ou advocacia de ódio contra indivíduos, ou ódio religioso. Ao mesmo tempo, recomenda ações dos Estados para criminalizar a discriminação e a incitação à violência, para promover a proteção de lugares sagrados, o diálogo inter-religioso, e a agir pedagogicamente de forma preventiva.

Em 15 de julho de 2011 a OIC – com o apoio da secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, o alto representante da UE para relações exteriores, e ministros e autoridades convidados de vários países, incluindo o Vaticano – organizou um encontro no Palácio Yildiz, em Istambul, e uma Declaração Conjunta foi emitida convocando os stakeholders relevantes a se comprometerem com a efetivação da Resolução 16/18.

Também em julho o UNHRC adotou o “Comentário Geral 34” sobre o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1976, o qual protege com grande clareza a liberdade de opinião e expressão, fazendo referência específica à relação entre essas liberdades e a religião:

“Proibições de manifestações de falta de respeito com uma religião ou outro sistema de crença, incluindo leis de blasfêmia, são incompatíveis com o Pacto, exceto nas circunstâncias específicas visadas no artigo 20 (...) seria inaceitável para quaisquer dessas leis discriminar em favor ou contra certas religiões e sistemas de crença, ou seus aderentes sobre outros, ou crentes religiosos sobre não crentes. Nem seria permissível que tais proibições fossem usadas para prevenir ou punir críticas de líderes religiosos ou comentários sobre doutrina religiosa e bases de fé.”

Em 19 de dezembro de 2011 a Assembleia Geral da ONU endossou a Resolução 16/18, adotando a Resolução 66/167, que praticamente reproduz o texto da Resolução 16/18, apresentada pela OIC e com apoio do Brasil – finalmente!

A partir da reunião de julho foi estabelecido o Processo de Istambul, voltado para a implementação da Resolução 16/18, com seis outros encontros com experts e autoridades relevantes: Washington (EUA) em 2012, Londres (Reino Unido e Canadá) em 2013, Genebra (OIC) em 2014, Doha (Catar) em 2015, Jeddah (OIC) em 2016, e Cingapura em 2017. Após uma pausa em 2018, foi feita uma reunião de revisão em Genebra e, finalmente, em novembro de 2019 a sétima edição do encontro sob o título: “Combatendo a intolerância religiosa: construindo sociedades inclusivas e resilientes, e confrontando a incitação ao ódio e à violência”, em Haia, sob coordenação do embaixador holandês para a liberdade religiosa, Jos Douma, e de Bahia Tahzib-Lie, embaixadora de Direitos Humanos do Ministério das Relações Exteriores dos Países Baixos.

O Plano de Ação de Rabat

A essa altura podemos comentar o “Plano de Ação de Rabat sobre a proibição da incitação ao ódio nacional, racial ou religioso”, apresentado na 22.ª sessão do UNHRC como parte do relatório anual do Alto Comissário dos Direitos Humanos da ONU. O documento, preparado a partir do trabalho de experts do Conselho, refina e especifica as providências para efetivação da Resolução 16/18.

No texto o comissário reconhece as dificuldades de efetivação da liberdade de expressão, ao lado do desafio de confrontar os discursos de ódio e discriminação. Cinco workshops com especialistas ocorreram em vários países a partir de 2011, sendo o último de 4 a 5 de outubro de 2012 em Rabat, no Marrocos, com a consolidação do Plano de Ação. Durante os encontros discutiu-se o comprovado impacto negativo das leis antiblasfêmia, e a dificuldade para definir-se que formas de expressão poderiam realmente ser definidas como incitação ao ódio e proibidas, considerando contexto e circunstâncias particulares. Mas uma definição crucial foi bem estabelecida nos workshops:

“Restrições devem ser formuladas de modo a deixar claro que seu único propósito é proteger indivíduos e comunidades pertencentes a grupos étnicos, nacionais ou religiosos, os quais sustentem crenças ou opiniões específicas, sejam elas de natureza religiosa ou de qualquer outra natureza, contra hostilidade, discriminação ou violência, e não o de proteger sistemas de crença, opiniões e instituições dessas críticas. O direito à liberdade de expressão implica que precisa ser possível escrutinizar, debater abertamente e criticar sistemas de crença, opiniões e instituições, incluindo religiosas, desde que não se advogue ódio que incite à violência, hostilidade ou discriminação contra um indivíduo ou grupo de indivíduos.”

Essa compreensão é, nitidamente, uma versão amadurecida das objeções levantadas à OIC pelos EUA, Canadá, União Europeia e diversas democracias liberais, expressando articulação entre uma visão elevada da dignidade humana pessoal, por um lado, e um reconhecimento da provisoriedade de suas representações de mundo, por outro lado.

O texto propriamente dito do Plano de Ação de Rabat destaca o foco de sua atividade “na relação entre liberdade de expressão e discurso de ódio, especialmente em relação a temas religiosos”. Depois de breve panorama histórico, observa sobre essa relação, com grande perspicácia, a inseparabilidade dos artigos 18 e 19 da DUDH:

“Frequentemente se supõe que a liberdade de expressão e a liberdade de religião ou crença teriam relações tensas ou mesmo contraditórias. Na realidade, elas são mutuamente dependentes e se reforçam. A liberdade de exercitar ou não exercitar a religião ou crença por alguém não pode existir se a liberdade de expressão não for respeitada (...) De fato, o pensamento livre e crítico no debate público é a forma mais saudável de testar se interpretações religiosas aderem ou distorcem os valores originais que subjazem à crença religiosa.”

O Plano critica as leis de blasfêmia como contraproducentes, causando os mesmos fenômenos que pretendem evitar, recomendando enfaticamente que elas sejam repelidas, uma vez que o sistema internacional não inclui o direito de ter uma religião livre de crítica ou ridicularização. Entre as diversas recomendações úteis, sugere aos Estados definições mais precisas do que seria “discurso de ódio”, distinção entre níveis aceitáveis e não aceitáveis de ofensa, e introduz orientações extremamente práticas aos stakeholders – autoridades, partidos políticos, imprensa e líderes religiosos – sobre o modo de promover os direitos de modo complementar.

Respeitar “o pecador”, mas não “o pecado”

É muito interessante considerar o resultado final de um debate de duas décadas sobre o relacionamento entre liberdade de expressão e liberdade de religião ou crença, e que se articula com outros fundamentos, como a dignidade humana, a liberdade de culto e o direito ao proselitismo. Ao fim e ao cabo, obtém-se o acordo de que os produtos culturais que sustentam a vida religiosa – crenças, instituições, cultos e concepções morais – não são realidades de segunda ordem, que não partilham da primazia da pessoa humana.

A dignidade das pessoas é inviolável. Mas suas crenças e práticas podem ser disputadas publicamente. Pessoas não podem sofrer estereotipificação negativa, tratamento discriminatório, ameaça moral ou física, ou discurso de ódio. Mas seu mundo simbólico não é infalível, podendo ser questionado, rejeitado e até mesmo odiado, desde que tal desprezo se dirija aos produtos simbólicos, e não às pessoas.

E de fato é perfeitamente possível ter em alta estima um amigo ateu, e considerar sua descrença – ou sua crença materialista, por exemplo – como algo absolutamente desprezível. Enquanto se ama o amigo, admite-se uma distinção entre a pessoa e a sua representação de mundo. A dignidade pertence ao humano que crê, mesmo quando ele crê numa bobagem. Na linguagem da evangelização cristã: o pecador deve ser amado, mas seu pecado não.

Como discutiremos em outra oportunidade, essa consideração se estende para quaisquer sistemas de crença, práticas cúlticas e morais, e instituições. Aplica-se, por exemplo, a partidos políticos: pessoas não devem ser odiadas porque defendem ideias políticas odiosas, como o comunismo e o nazismo. Nem devem ser odiadas porque defendem a ideologia Queer, ou o discurso de gênero, ou porque defendem a existência de identidades afetivo-sexuais. É claro que, para os cristãos, a assim chamada “identidade de gênero” é uma quimera, um construto doentio baseado na ideologia do liberalismo expressivo ou terapêutico moderno. Mas é possível amar militantes crentes do movimento LGBTQIAPN+ e ainda assim distinguir suas dignidades pessoais de suas falsas representações da sexualidade e da identidade.

A relevância de tal compreensão é imediata. Em outro artigo, escrevi sobre os ataques de Richard Holloway, ex-bispo anglicano de Edimburgo, contra o discurso moral da Igreja Anglicana na área da sexualidade, numa entrevista dele no programa Hard Talk da BBC:

“Holloway diz claramente que a origem de sua crise de fé foi realmente ética: a moralidade sexual cristã tornou-se um problema, um atraso e um cativeiro. “Mas e quanto à ideia de que a igreja não se opõe às pessoas, mas ao comportamento?” ele afirmou, categórico: “it is a distinction without a difference”, ou seja, “é uma distinção sem uma diferença”.”

É interessante considerar que o argumento de Holloway é exatamente o argumento da OIC e dos defensores das “leis antiblasfêmia”: a de que seria impossível distinguir entre as pessoas e suas crenças e comportamentos. No entanto, Holloway, assim como a Organização para a Cooperação Islâmica, estão errados, cada um a seu modo. Embora as crenças e comportamentos das pessoas constituam suas personalidades, não são idênticas a elas, e não compartilham igualmente de sua dignidade e caráter finalístico. Crenças e comportamentos são meios para a personalidade, e para atingir o sumo bem. A tese dos promotores do movimento LGBTQIAPN+ de que não é possível respeitar as pessoas e rejeitar suas alegadas identidades afetivo-sexuais é falsa e contraproducente, elevando a tensão com outras moralidades e religiões e destruindo a liberdade de expressão, exatamente como as leis contra a difamação do Islã.

Não existe, no sistema internacional de direitos humanos, qualquer vedação à difamação da religião ou crença, seja ela qual for – inclusive a de quaisquer crenças ou descrenças morais. Mais: o direito de criticar o sagrado do outro é um desdobramento orgânico e uma consequência necessária das liberdades fundamentais de crença e de expressão.

O Brasil e a Resolução 16/18

É interessante considerar a situação do Brasil nesse grande debate internacional. Sabemos que durante os anos de ouro das resoluções de “Combate à Difamação das Religiões”, o gigante verde-e-amarelo votava consistentemente a favor da OIC e contra os EUA e a UE, supostamente mantendo sua “posição diplomática independente”. Apenas tardiamente o Brasil passou a abster-se do voto, até apoiar a nova Resolução 16/18 em 2011. Mesmo assim, depois disso, nenhum esforço foi feito durante toda a dispensação política lulopetista para discutir, publicizar e implementar os parâmetros da resolução.

Embora esteja investigando o tema, minha própria hipótese é a de que o dialeto de direitos humanos e diversidade religiosa, como promovido pela esquerda brasileira, envolvia uma forte polêmica contra os esforços proselitistas evangélicos, pentecostais e neopentecostais, uma condescendência com as sensibilidades do catolicismo tradicional, constantemente feridas pela pregação protestante, e um compromisso desequilibrado com a promoção de religiões de matriz africana e de povos de terreiro, tendo em vista uma espécie de “igualitarismo das crenças”.

Nesse contexto, a crítica evangélica a essas religiões e os esforços de evangelização eram interpretados como atos de intolerância religiosa. Leis internacionais condenando a “difamação das religiões” seriam bastante convenientes para enquadrar o vitorioso proselitismo evangélico e reforçar um projeto de disestablishement religioso, em nome da “democracia” e da “diversidade”.

O Que tem o judiciário contra os demônios?

Na substância, o Ministério Público da Bahia certamente não errou. Pois o que vemos, no supracitado caso do pastor de Vitória da Conquista, é uma clara promoção do ódio contra a pessoa humana, de incitação à violência e de estereotipificação negativa. Cabe, naquele caso, a caracterização de ofensa criminal, além da ofensa moral.

Mas é curioso observar que o MP tenha se incomodado com o emprego de linguagem teológica, quando o pastor acusou associação de certas práticas morais e religiosas com demônios. Certamente não seremos cínicos: essa acusação compõe o quadro de desqualificação moral da pessoa ofendida.

Ainda assim, a acusação do pastor, em circunstâncias outras, poderia ser perfeitamente plausível. Imagine, num experimento mental, o que outro líder evangélico, mais amigo de Jesus Cristo e mais afeito aos direitos humanos, poderia pensar nesse caso: “se há algo demoníaco nessa história, é o ódio daquele falso pastor!” Estaria esse clérigo imaginário cometendo um ato de intolerância ou de ódio ao pensar e mesmo ao dizer em público tal coisa? Certamente que não.

O leitor com sensibilidades secularistas e antissobrenaturalistas talvez se incomode particularmente com a referência a espíritos malignos. “Seria melhor dizer que esse pseudopastor é simplesmente um péssimo ser humano!” Mas nada se ganha nesse caso; primeiro, porque tal resposta entraria no mérito de qual a melhor cosmovisão para julgar o crime de intolerância, e, segundo, porque não evita que um ódio justificado seja dirigido contra o pastor intolerante.

Mais: pode o Ministério Público dizer algo sobre demônios, se eles existem, e quais as suas obras, e seus aliados humanos, e o que se deve fazer a respeito deles? Mas qual seria a Constituição ou Código Penal infernal a partir do qual o MP poderia avaliar tais coisas? Desde quando os juristas brasileiros se tornaram especialistas em demonologia? E existe cargo público para isso?

O fato é que seria perfeitamente legítimo que um pastor evangélico pregasse, do púlpito, que certas religiões abrem espaço para a atuação de demônios, e que a ideologia do movimento LGBTQIAPN+ (a saber, sua negação da “heteronormatividade” ensinada no livro de Gênesis) poderia ter sido inspirada por demônios, e ainda assim nada disso constituiria em ataque contra a dignidade das pessoas dessas religiões ou com tais e tais identidades afetivo-sexuais. Pelo contrário, esse pastor poderia inclusive sentir e promover grande amor e respeito à dignidade dessas pessoas, como seres feitos à imagem de Deus, e poderia até mesmo mobilizar sua congregação para orar e servir a esses seres humanos, na expectativa amorosa de que eles pudessem ser livres de suas ilusões espirituais e afetivas.

Seria também legítimo que os fiéis da congregação do referido pastor ensinassem a seus filhos que tais religiões seriam falsas religiões, e que as identidades LGBTQIAPN+ seriam falsas identidades, e que as práticas de tais movimentos seriam reprováveis, desde que esses filhos fossem também ensinados a respeitar as pessoas independentemente de seus sistemas de crença, de seus discursos e de suas visões morais. Nada disso poderia ser considerado “ódio religioso” per se.

Por outro lado, seria muito legítimo que um adepto do laicismo considerasse o pastor ofensor como um perfeito idiota, ou pior: que as crenças religiosas do sujeito fossem doentias e desumanizadoras. Esse laicista poderia ser um ateísta, e pensar que qualquer pastor, ao crer em Deus, ilude a si mesmo e a outros, devendo sua doutrina ser combatida. Isso seria perfeitamente aceitável, desde que o laicista em questão fosse capaz de reconhecer e respeitar a dignidade do pastor evangélico, garantindo que suas críticas não sejam usadas para destruir direitos, reputação moral ou incitar à violência.

Esse laicista poderia, até mesmo, organizar uma companhia artística denominada “Porta dos Fundos”, e gravar especiais de Natal zombando do Cristianismo, com o fim de desancar um sistema religioso que ele considera desprezível, e aproveitar para ganhar um dinheirinho.

E tudo isso estaria sob proteção da Resolução 16/18 do Conselho de Direitos Humanos da ONU, e do Sistema Internacional de Direitos Humanos. Porque a “difamação da religião ou crença” não é crime, e criticar as ideias de qualquer pessoa sobre o que é sagrado é um direito humano fundamental.

Finalmente, a minha “diabólica” conclusão: O pastor Jack não fez nada de errado, do ponto de vista jurídico, e talvez tenha até mesmo agido corretamente, do ponto de vista moral, se pretendia apenas advertir sua congregação sobre os perigos de falsas crenças religiosas. Talvez seja possível dizer, sim, que seu modo de colocar as coisas não tenha sido o melhor para a paz social; mas essa é outra questão. Pois no mérito, a crítica do sagrado do outro é livre, e o sagrado de um pode ser o demônio de outro. Ele agiu dentro dos seus direitos – assim como agirá dentro de seus direitos quem quiser acusá-lo de ensinar uma doutrina “satânica” – ou fundamentalista, que é o equivalente laico de “demoníaco”.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Guilherme de Carvalho Teólogo formado pela Escola Superior de Teologia do Mackenzie, mestre em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e doutorando em teologia pela Faculdade Teológica de Kampen/Utrecht. Foi professor de teologia por vários anos e trabalha hoje com divulgação e formação em teologia pública. É atualmente pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte, diretor de L’Abri Fellowship Brasil, presidente da Cristãos na Ciência (ABC2) e colunista da Gazeta do Povo.