Cristofobia à brasileira: o maior desrespeito com a igreja perseguida

Cristofobia à brasileira: o maior desrespeito com a igreja perseguida

Falar sobre perseguição à comunidade cristã e sobre o cristianismo como um povo perseguido e a influência da identidade de fé que uma pessoa cristã tem na maneira como ela vai acessar direitos ou ser vista pela sociedade é um assunto que deveria ser tratado pela igreja evangélica com muito respeito, honra e seriedade. Em momento oportuno poderemos discutir e problematizar a ideia proselitista de ir até uma nação com o objetivo principal (e muitas vezes exclusivo) de converter pessoas e captar adeptos à fé cristã (principalmente ao modo de fé cristã da pessoa que faz esse momento).

A Geografia da Religião tem, entre outras possibilidades, os estudos a respeito da materialização no território da fé. Embora seja algo subjetivo e abstrato, a fé movimenta e orienta muita coisa na vida e consequentemente no território. Dentre essas materializações concretas estão conflitos políticos e sociais, inclusive envolvendo a perseguição à vida, segurança e integridade de pessoas em países que se confessam religiosos e não toleram nenhuma presença de pessoas que tentem estar dentro de suas fronteiras com objetivo de atacar a pertença que lhes é outorgada pela lei.

Sim, essas denúncias existem e esses casos são reais. Como membro das Nações Unidas para temas de Religião tenho a oportunidade de acompanhar alguns casos desses e perceber o que significa a “perseguição religiosa” a pessoas que confessam a fé evangélica. Aconteceu entre os dias 09 a 20 de Julho em Nova York o “Fórum Político de Alto Nível” na sede das Nações Unidas, evento ao qual atendi presencialmente, participando de encontros internos e até reuniões multilaterais, onde o tema do fundamentalismo religioso e seus impactos têm feito parte da agenda de discussões, inclusive tive oportunidade de palestrar sobre isso para alguns diplomatas e líderes da sociedade civil em um evento paralelo que fez parte da agenda oficial do Fórum Político.

Quando eu era criança sempre ouvi essas histórias de perseguição por causa do evangelho nos cultos de missões, que são cultos dedicados a falar sobre a atividade missionária (proselitista) de captação de fieis ao redor do mundo nas suas mais diversas e criativas formas. Na adolescência fiz vários treinamentos em organizações missionárias (JOCUM, OM, Portas Abertas) dedicado a pensar os desafios de estar e ser parte da chamada “igreja perseguida”. Inclusive acompanhava o ranking com os 50 países mais perseguidos do Mundo e orava por eles. Havia um sentimento de respeito reverencial e sempre acompanhado de orações com gratidão pela liberdade que temos no Brasil de podermos viver nossa fé de maneira livre.

Diante desse cenário de sensibilização, nos últimos anos os políticos evangélicos e pastores envolvidos com a política tem reivindicado esse discurso de perseguição para pautar posicionamentos políticos nas suas igrejas e coagir seus fieis, através do medo à assumirem posturas contrárias e instaurar uma atmosfera de pânico moral completamente descolado da realidade.

Acumulando várias polêmicas nas últimas semanas, o Pastor André Valadão, durante a corrida eleitoral durante 2022 gravou um vídeo extremamente sensacionalista sobre uma comunicação judicial que ele recebeu e através de um texto mentirosamente muito bem escrito, usando subentendidos e não falando a verdade de maneira explícita, incita em seu público a sensação de que ele estava sofrendo perseguição por ter emitido opiniões políticas e se resguardado em suas convicções religiosas para tal. Na época da corrida eleitoral, o vídeo tomou repercussão mas logo foi deixado para trás diante de outros temas envolvidos na corrida eleitoral.

Como pastor gay, poderia me debruçar a comentar as ameaças e violências que André se dedicou a proferir contra a comunidade LGBTI e como biblista poderia inclusive refutar seus argumentos infantis na tentativa de dizer que “não é movimento, LGBTQ é uma religião” (sic), mas quero me debruçar a pensar sobre outro ponto que talvez não tem sido evidenciado nos últimos dias que é a maneira desrespeitosa com que André Valadão e vários outros políticos evangélicos têm reivindicado o termo “cristofobia” para tentar criar na sociedade uma atmosfera de medo e perseguição, como se a pertença religiosa evangélica estivesse sendo alvo de ameaça no cenário político social e cultural do Brasil hoje em dia.

É inegável que uma oratória e retórica bem construída fazem um estrago imensurável na massa e por certo estamos num cenário de guerra híbrida onde os meios de comunicação têm sido disputados e se transformado num verdadeiro campo de batalhas. As pessoas denunciam vídeos, engajam na divulgação de postagens, comentam, compartilham, não mais pelo lazer e descanso, mas por uma causa. As redes sociais e a internet também viraram um “campo missionário”.

Alguns dados importantes de serem apresentados aqui é que o Brasil é um Estado Laico em sua constituição e também é fundamental dizer que, em cenários políticos de perseguição ao evangelho jamais bancadas evangélicas se formariam no parlamento, ainda mais com acesso a tanta influência na agenda, na pauta e nas deliberações de um congresso. A segunda maior emissora de TV aberta do país pertence a um Bispo evangélico e novelas com histórias bíblicas são exibidas todo ano.

Além disso, é importante lembrar que no Brasil, eventos de agressão física, apedrejamento, destruição de templos, acontece com pessoas de religião de matriz africana e não há relatos de acontecimentos desse tipo de situação com igrejas evangélicas ou católicas. Inclusive situações exacerbadamente contraditórias como um traficante autodeclarado evangélico destruindo casas de axé e usando o nome de Jesus como justificativa para invasão de propriedade e destruição de patrimônio religioso de outrem. O discurso de que o cristianismo está sendo perseguido e o endereçamento dessa perseguição a paranoias como “comunismo” e “movimento LGBTI+” além de uma mentira sem tamanho, é desrespeitoso com as pessoas que de fato precisam alterar seu modo de viver porque não podem ser percebidas publicamente como cristãs.

Numa tentativa hostil de invisibilizar dados como o fato do Brasil ser o país que mais mata pessoas LGBTI+ no mundo, especialmente a população Trans, políticos cristãos têm apelado ao ponto de pedir para as pessoas compartilharem em suas redes sociais situações em que ser cristão lhes ofereceu situação de constrangimento. É claro que ninguém apoia o bullying e que ridicularizar a experiência de fé de qualquer pessoa é uma situação lamentável. É óbvio que eu posso contar, por mim  mesmo, momentos onde eu era um adolescente proselitista que tinha grupo de estudo bíblico no Colégio em que estudava e essa situação gerou chacota ou constrangimentos para mim. Sem suavizar ou fingir que essas situações não aconteceram, posso assegurar que isso tudo está longe de colocar o Brasil como um país que “persegue cristãos”.

Respeitar o luto das famílias que perderam entes porque estavam em países onde o direito ao culto lhes foi motivo de risco de vida passa por saber mensurar o que acontece no Brasil em termos de relacionamento entre política e religião. O que esse setor evangélico fundamentalista tem feito com esse projeto de coação de fieis é, no mínimo, uma profanação do cristianismo e da Igreja. A pesquisadora Viviane da Costa é teóloga, pastora pentecostal e lançou um livro onde se debruçou na pesquisa sobre o que ela chama de “Traficantes Evangélicos” no Brasil e em entrevista cedida ela comenta sobre a contradição dessa posição e sobre a instrumentação da religião na relação política criando uma narcorreligião. O uso da retórica e da mídia como instrumentos de manipulação da massa para criar um pânico moral é um escárnio com a Igreja que resiste em contextos de perseguição e ousa acreditar na fé como instrumento de esperança e libertação.

A memória de pessoas que morreram por se confessarem cristãs, desde as narrativas do Novo Testamento, igreja primitiva e o cristianismo catacumbário, merecem respeito e honra. Usar essa narrativa de perseguição para tentar construir um país onde a moral cristã determine as políticas públicas porque essa “igreja” não sabe lidar com divergência e contraditório é uma ofensa sem precedentes na história do protestantismo no Brasil, sem contar que é um contrassenso com o legado da reforma protestante, que teve como tema central de sua pauta a defesa da laicidade do Estado e a separação entre as convicções religiosas enquanto mecanismo de tomada de decisão sobre a política, o Estado e suas deliberações.

As brechas, entretanto, têm surgido. Diversos espaços de fé tem conseguido se estruturar e se posicionar contra essa aproximação indiscriminada de líderes religiosos de temas ligados à política e dentro das próprias congregações e denominações esses excessos são percebidos e as primeiras fissuras já estão acontecendo. Alguns portais de notícia levantaram o dado, por exemplo de que já passava de 70 a quantidade de comunidades locais que se desligaram da Igreja Batista da Lagoinha, mesmo antes do mês de junho e dentre os motivos o exagero na militância política foi um deles. O próprio Bispo Edir Macedo, conhecido nos últimos 4 anos pelo enfático apoio ao ex-presidente Bolsonaro, percebeu que suas posturas poderiam lhe custar e em Novembro do ano passado mudou o tom de como se referia ao eleito e agora presidente do país, Lula.

O tema da perseguição do cristianismo é muito sério e precisa ser tratado com honra, respeito e honestidade. O uso dissimulado desse argumento como tentativa de coerção ainda vai custar muito ao heterogêneo, nada monolítico e diverso grupo classificado como “evangélicos do Brasil”.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Bob Luiz Botelho é membro Associado das Nações Unidas para assuntos de Religião (UN Religion Fellow) agenciado pelo CONIC e pela OutRight International. Estudante e pesquisador em Geografia da Religião pela UFPR, é teólogo de formação pentecostal e batista, tendo raíz e formação presbiteriana com uma passagem pelo adventismo. Fundador do Evangélicxs pela Diversidade, a primeira iniciativa evangélica e LGBTI+ da sociedade civil na América Latina, atuando na OEA e sendo o primeiro LGBT+ assumido a ser membro pleno da FTL (Fraternidade Teológica Latinoamericana). Reverendo pela IADLA-Brasil (Iglesia Antigua de Las Américas), é pastor na Comunidade MESA em Curitiba. Atuou por 7 anos em diversas organizações missionárias, onde estudou e deu aula de Missiologia e Missão Integral. Biblista formado pelo CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), é professor de Exegese, Hermenêutica e Teologia Queer. Instagram: @bob.luizbotelho Youtube: youtube.com/@bobluizbotelho Contato por https://taggo.one/bob.luizbotelho