Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) completa 50 anos em celebração que é o oposto da Marcha para Jesus
No dia 08 de junho, aconteceu a 31. Marcha para Jesus, evento liderado pela Igreja Renascer em Cristo e demais igrejas parceiras. A Marcha é um grande evento que promove pastores e pastoras pop star, artistas de música gospel e uma multidão de fiéis que expressam com louvor, orações e devoções a centralidade da sua fé em Jesus Cristo. Destaco a palavra centralidade, que, em alguns casos, poderia ser traduzida por exclusividade da fé em Jesus, que como o próprio título da Marcha definiu, é um vencedor invicto.
O tema da Marcha de 2023, “Jesus, um vencedor invicto”, é paradoxal e um tanto quanto contraditório em relação aos textos do Evangelho. A simples ideia da possibilidade de um Messias que ameaçasse o poder do preposto do Império Romano, Herodes, era incômoda e exigia intervenção violenta. José e Maria, pai e mãe da criança chamada Jesus, tiveram que imigrar para o Egito para salvar a vida do recém-nascido. Sua infância, adolescência são mistério. Não há relatos, talvez fosse necessário mantê-lo anônimo para não ser assassinado ainda jovem.
Já na vida adulta, foi estorvo, especialmente para o Templo de Jerusalém, que sustentava uma elite sacerdotal altamente distanciada da maioria da população e bastante orientada pelo legalismo moral.
Portanto, não surpreende que o fim de Jesus tenha sido a morte na cruz - a pior sentença que poderia ser proclamada à época. Um detalhe é importante: na condenação de Jesus, a decisão final de sua morte foi confirmada por uma massa incandescida de pessoas, que ao ser perguntada por Pilatos quem deveria ser liberto, se Barrabás, uma pessoa conhecida por alguns delitos, ou Jesus, não teve dúvidas e escolheu Barrabás.
Não há como passar pela história de Jesus sem tropeçar na violência da cruz, símbolo maior das consequências da relação entre poder religioso, forças econômicas e políticas. É impossível a ideia de um Jesus vencedor e invicto. Talvez alguns digam que no terceiro dia Jesus ressuscitou. Sim, a fé cristã tem a ressurreição como o mistério da vitória da vida sobre a morte, no entanto, mesmo ressuscitado, as marcas da violência da cruz ficaram, tanto é que seus discípulos somente acreditaram na ressurreição por causa das marcas de violência presentes no corpo de Jesus.
Não tivessem sido as mulheres que vigiaram seu corpo pregado na cruz, Jesus teria morrido na mais profunda solidão. Não fosse José de Arimatéia, Jesus, possivelmente, seria jogado em uma vala comum.
A ditadura militar jogou muitos corpos jovens em valas comuns. O Brasil é um país onde diariamente corpos de mulheres, pessoas negras, indígenas, trans são crucificados. Inúmeras famílias atingidas pela violência policial não têm corpos para sepultar. Existem inúmeros movimentos de mães que perderam seus filhos pela violência e que não se cansam em reivindicar justiça para que a cruz moderna que matou seus filhos se transforme em sinal de ressurreição.
Uma semana após a Marcha para Jesus, nos dias 12 e 13 de junho, comemoramos, na cidade de Salvador, os 50 anos da Coordenadoria Ecumênica de Serviço – CESE, que é uma organizada ecumênica formada por igrejas protestantes e pela igreja Católica Romana. A CESE foi criada no ano de 1973, em plena ditadura militar. Sua primeira grande contribuição para a história do cristianismo brasileiro e na luta pela democracia foi a primeira publicação da cartilha sobre Direitos Humanos, que estabeleceu a relação entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e versículos bíblicos.
Anos mais tarde, em 1992, durante o massacre de Carandiru, esta cartilha foi exposta por um detento, cujo olhar denunciava as crucificações que estavam ocorrendo em plena luz do dia.
A CESE, ao longo de seus 50 anos, beneficiou com seu Fundo de pequenos projetos, 10.139.679 pessoas. Este apoio tem contribuído para que os corpos banidos de hoje das mais diferentes tradições religiosas e culturais se organizem em seus quilombos e comunidades indígenas. Os apoios da CESE são fundamentais para que mulheres reajam em resposta às misoginias diárias, para que movimentos de Sem-teto e Sem Terra sigam reivindicando moradia popular e terra para alimentação saudável.
A celebração dos 50 anos da CESE não contou com uma Marcha para Jesus triunfalista. Os 50 anos da CESE foi uma celebração inter-religiosa, realizada na Igreja Santíssima Trindade que tem na acolhida de pessoas em situação de rua o centro de sua prática de fé. Estavam lá, movimentos sociais, pessoas em situação de rua, diferentes igrejas e religiões. A celebração da alegria e do compromisso revelou as consequências da cruz e mostrou que corpos crucificados organizados podem semear a ressurreição.
Os 50 anos da CESE não ocupou manchetes de grandes jornais de circulação nacional e nem telejornais. Eis uma manifestação religiosa na vida pública que é invisibilizada, talvez porque, é antissistema por afirmar que Jesus não é um vencedor invicto, mas alguém que nos desafia a reconhecermos as diferentes habitabilidades que nos formam.
* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site
Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.