Como transpor a redoma?
Em uma das abordagens sobre a adesão dos evangélicos ao bolsonarismo falei da redoma (ler aqui). Se é verdade que o coronelismo evangélico, que o voto de cabresto, perdeu sua força no meio evangélico, também é verdade, por outro lado, que o mundo evangélico, com suas subculturas, constitui um desafio por estar envolto por uma redoma. Até mesmo organizações paraeclesiásticas das próprias denominações têm dificuldade, por vezes, de acessar a membresia das igrejas com informações, pedidos e campanhas.
Com o crescimento do mundo evangélico que não representa, necessariamente, o crescimento do Evangelho de Jesus de Nazaré, partidos estigmatizados como o PT precisam remir o tempo promovendo ações que busquem o diálogo e criem buracos na redoma. Buracos suficientes para que o fluxo de informações se estabeleça. Do contrário, corre-se o risco da tessitura da redoma tornar-se ainda mais espessa nos quatro anos que nos esperam até 2026.
Antes de transitar por algumas sugestões, penso que um governo que entregue conquistas sociais possa fazer balançar as estruturas da redoma pelo convite à realidade. Entretanto, não sejamos ingênuos: estamos falando de estruturas religiosas, de fomento de preconceitos, de convites à irracionalidade e ao negacionismo; de desprezo pelo bom senso. Nesse sentido, como pôde ser visto após o oito de janeiro, o choque de realidade não será suficientemente libertador para comunidades que vivem alucinadas em brasis paralelos. Será necessário algo mais.
Todavia, o que fazer? Segue aqui uma pequena e sugestiva lista de coisas que, se feitas, podem flexibilizar a redoma.
A primeira ação é a do reconhecimento do papel das Igrejas no alívio do sofrimento do povo. As igrejas, via de regra, não conseguem resolver o problema social, mas minoram suas consequências como também fomentam caminhos de saída. Sim, estamos falando mais do que entrega de cestas básicas ou abertura dos templos para recebimento de mutirões de saúde. Estamos falando de igrejas que se tornam tanto espaço de referência segura para a população quanto propulsoras sociais. Vi de perto, na tragédia da região serrana do Rio de Janeiro em 2011, quantas igrejas se abriram para acolher flagelados e distribuir donativos, além de manifestar cuidado e carinho. Cansei de ver também pastores que mudaram a realidade socioeconômica de sua membresia, pelo incentivo ao estudo ou mesmo ao empreendedorismo.
A igreja está em todo lugar; ela tem capilaridade. Nesse sentido, talvez fosse producente o governo estabelecer parcerias. Por que não pensar, ao invés da retirada, em uma compensação pela isenção tributária? Ao invés de construir creches, por que não usar o espaço físico das igrejas como local de acolhimento para estas crianças, com profissionais da educação pública? Seria isso um sonho?
Nas tragédias, como a do litoral norte de São Paulo, por que não usar as igrejas como local de apoio, como já acontece (em muitos casos) espontaneamente?
Uma segunda ação seria a de empreender a laicização do Estado. Não cabe as cerimônias oficiais no Planalto, por exemplo, serem precedidas por atos litúrgicos de quaisquer natureza. De igual modo, nenhum religioso deve ser guindado a qualquer cargo na administração pública pelo fato de ser religioso, mas sim pela capacidade técnica inerente ao cargo que vier a ocupar. Não é hora de privilegiar os que foram silenciados. Não se trata de um movimento para um lado, mas de momento. E o momento histórico é de banimento das mordaças.
Outra ação desejável é cortar os investimentos estrangeiros de organizações fundamentalistas estadunidenses, visto que elas agem para engrossar a redoma, acrescentando-a novas camadas. Elas estão por detrás da promoção da demonização da esquerda. Se não para proibir, que tal coibir, sobretaxando em até 50% tais recursos e aplicando este resultado auferido em ações que visem preservar a democracia e combater o fundamentalismo entre cristãos?
O governo também poderia pensar em fortalecer lideranças, segmentos, coletivos evangélicos tais como: Fraternidade do Evangelho; Movimento Batistas por Princípios; O Reino em Pessoa; Mulheres de Luta; Resistência Reformada; Cristãos Contra o Fascismo; Frente Evangélica pelo Estado de Direito, entre tantos outros. O empoderamento pela maior visibilidade de tais lideranças e movimentos podem pulverizar a influência no meio gospel, eliminando a cadência e a nefasta cadeia hoje existente.
O apoio às mais variadas ações de tais coletivos podem trazer oxigenação ao já pesado e viciado ar que tomou conta de parte das igrejas no Brasil. É verdade que há um excesso de encontros, congressos, entre os evangélicos. Entretanto, muito pouco deles oxigena. São encontros de arregimentação e não de confrontação com a libertadora e abrangente mensagem do Reino de Deus.
Penso também que nesse primeiro momento, o governo deve evitar tópicos-bomba. Que eles sejam abordados e exaustivamente discutidos no Congresso. A hora é de desfazer os muros e não de aumenta-los.
Por fim, nesta lista que não se esgota em si mesma, está um pequeno cuidado na direção dos sacerdotes. Por receberem prebendas, as instituições religiosas não são obrigadas a pagar o INSS deles. Mesmo assim, sacerdotes de diferentes tradições seguem contribuindo com o INSS. No entanto, o programa da Declaração do IR só permite a prestação de tal informação, uma vez que não vem na DIRF fornecida pelo “empregador”, em um subgrupo de rendimento de pessoa física do exterior. Não são poucos os religiosos que têm sua restituição retida (o que faz falta) e que precisam apresentar as guias de recolhimento do INSS à Receita. Um aceno do governo, dentre os limites legais e não implicando em diminuição de impostos, equalizando esse transtorno, pode ter um efeito muito positivo no esforço de penetrar esta redoma. Contudo, ressalto que esta, como as demais (e outras) ações, precisam ser empreendidas a partir de agora.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas.