Como lidar e classificar os religiosos que apoiaram um golpe militar no Brasil?
É compreensível que aqueles envolvidos no dia a dia da política partidária ou dos movimentos sociais façam uso de rótulos, categorias e conceitos com certa liberdade – mesmo que esses possam ser inoportunos, equivocados ou contraproducentes -, pois o seu uso visa servir como palavras de ordem, construção de “narrativas”, ou elementos mobilizadores. Isso se aplica a termos como “fascista”, “golpista”, entre muitas outras categorias que se popularizaram nos últimos anos e acabaram se afastando de seus significados analíticos, transformando-se em simples rótulos acusatórios. Por outro lado, quem assume o papel de analista, seja no meio acadêmico ou fora dele, deve proceder com cautela ao classificar, necessitando fundamentar tais classificações e aplicar as consequências decorrentes delas.
É crucial destacar isso, pois, diante das revelações recentes, rotular Bolsonaro e seu círculo político próximo de golpistas transcende a simples acusação, "narrativa", exagero ou uma mera expressão de oposição. Está devidamente registrado e tornado público que Bolsonaro planejou e efetivamente buscou apoio para realizar um golpe militar no Brasil. De fato, estivemos muito próximos de presenciar um golpe militar.
Caso tivesse logrado sucesso, ao menos um ministro do STF se tornaria preso político, um governo eleito seria impedido e tomar posse, e as instituições republicanas seriam coagidas a funcionar sob a ameaça de uso ilegítimo da força. Isso apenas em um primeiro momento, de acordo com o que estava planejado, documentado e acordado entre os golpistas. Em um segundo momento, não saberíamos mais onde o arbítrio poderia chegar, já que o andar de golpes de Estado são sempre imprevisíveis, pois trazem toda uma reconfiguração das forças de poder do país. Na última vez, em 1964, o golpe instalou um regime que privou os brasileiros de direitos por mais de 20 anos, além de ter torturado, assassinado e exilado um número significativo de adversários políticos.
A Justiça brasileira assumirá a responsabilidade de julgar e punir o grupo associado a tentativas golpistas ligadas a Bolsonaro no futuro próximo, garantindo que enfrentem as consequências de suas ações, mais cedo ou mais tarde. Isso evidenciará que nossas instituições, apesar de suas falhas e lentidão, se fortaleceram nas últimas décadas. Entretanto, persiste um desafio político significativo: como confrontar as forças e grupos sociais que expressaram (e muitos continuam expressando) apoio a uma ruptura democrática? Desde cidadãos comuns até políticos eleitos e líderes de instituições religiosas, existe um número considerável de pessoas que continuam alinhadas a Bolsonaro.
No contexto religioso brasileiro, foco desta discussão e deste espaço, numerosos líderes de instituições religiosas apoiaram a reeleição de Bolsonaro e continuam a apoiá-lo até agora, indicando, assim, sua disposição em respaldar um golpe militar no país. Guilherme de Carvalho, intelectual conservador cristão e pastor, que serviu no governo Bolsonaro por meses, declarou, após os eventos de 8 de janeiro, que subestimou a ameaça que o bolsonarismo representava à democracia. Ele argumentou que os cristãos não deveriam ter apoiado, nem deveriam continuar apoiando, o bolsonarismo. Carvalho manteve suas convicções conservadoras e seguiu criticando a esquerda brasileira de forma legítima e relevante, mas estabeleceu um limite intransponível: a defesa da democracia. Muitos líderes religiosos poderiam adotar uma postura semelhante, mas optaram e continuam optando por não fazê-lo, mantendo-se ao lado de Bolsonaro e perpetuando um movimento político que só pode ser classificado como golpista, antidemocrático e intolerante. Se apresentam, dessa forma, não como meros atores políticos ou representantes legítimos de um campo político, mas sim como verdadeiros problemas democráticos.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Vinicius do Valle é Doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Ciências Sociais pela mesma Universidade (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP). Realiza pesquisa de campo junto a evangélicos há mais de 10 anos. É autor, entre outros trabalhos, de Entre a Religião e o Lulismo, publicado pela editora Recriar (2019). É diretor do Observatório Evangélico e professor universitário, atuando na pós-graduação no Instituto Europeu de Design (IED) e na Faculdade Santa Marcelina, ministrando disciplinas relacionadas à cultura contemporânea e a métodos qualitativos. Realiza pesquisas e consultoria sobre comportamento político e opinião pública. Está no Twitter (@valle_viniciuss)