Atritos entre missionários e antropólogos é prejudicial aos povos tradicionais

Antropólogos tendem a desconfiar do trabalho de missionários em terras indígenas. Já os missionários tendem a desconsiderar a contribuição dos cintistas para o bem-estar dos povos tradicionais. Visto que todos estão interessados na defesa destes povos, é urgente o diálogo entre um e outro lado.

Atritos entre missionários e antropólogos é prejudicial aos povos tradicionais

A presença e atuação missionária evangélica em terras indígenas é um tema que surge com frequência na imprensa. Nessas abordagens, muitas vezes é exposto um atrito improdutivo entre missionários, de um lado, e antropólogos e etnógrafos de outro. Considerando que nesses embates ambas as partes são movidas por boas e legítimas motivações, as quais se circunscrevem no domínio da atuação de cada uma, minha intenção ao escrever este texto é defender a necessidade de um diálogo entre os dois lados, que, se bem conduzido, só teria a favorecer os povos tradicionais.

Um bom ponto de partida seria uma autocrítica necessária, de modo que cada lado, ao reconhecer seus equívocos, esteja propenso a reconhecer também a contribuição do outro para o bem-estar e dignidade dos povos indígenas.
Em linhas gerais, de um lado temos os missionários que, em muitos casos, possuem um conhecimento empírico das realidades indígenas maior do que grande parte dos pesquisadores, antropólogos e etnógrafos. Já estes, indiscutivelmente costumam estar munidos de um cabedal teórico e de uma qualificação científica que falta a muitos missionários.

Se a contribuição de ambos os lados para a causa dos povos tradicionais poderia ser potencializada por uma troca, pela via dialógica, de experiências e perspectivas, por que isso não ocorre?

Arrisco dizer que o principal empecilho é a vaidade de ambas as partes. Conheço muitos missionários que sequer aceitam sentar-se numa mesa para conversar com um crítico de seu trabalho. O missionário é vaidoso porque, pela natureza do seu trabalho, fala melhor a língua indígena, tem um conhecimento empírico maior e é movido por uma perspectiva vocacional que, na sua compreensão, o coloca numa posição superior à do pesquisador, na medida em que sua dedicação vocacional demanda alta dose de sacrifício pessoal. Já a vaidade dos representantes da academia, parte do enorme preconceito de acreditarem que os missionários são meros destruidores de culturas, desconsiderando os benefícios sociais que passam pela preservação linguística e cultural que estes têm promovido ao longo de décadas. Por exemplo, o trabalho de resgate e preservação de línguas tradicionais que a Sociedade Internacional de Linguística tem feito em maior escala e melhor qualidade do que qualquer outra iniciativa.

É necessário que ambos os lados sejam capazes de reconhecer o modo como sua formação e seus pressupostos acabam por comprometer a compreensão da atuação do outro.

A afirmação de que o trabalho missionário estaria pondo em risco as culturas tradicionais é problemática na medida em que prioriza e eleva as formas culturais acima dos povos que a possuem, como se estes, ao viverem sua cultura, não a produzissem e não fossem capazes de transformá-la. Essa diferença entre a defesa de uma cultura tradicional e a defesa dos povos tradicionais é importante e poderia ajudar numa desejável autocrítica feita pelos cientistas.

Deveria haver mais espaço para o diálogo saudável, como a discussão sobre ser o Evangelho benéfico ou não para os povos tradicionais. Mas para que ela se torne mais frutífera, é necessário o reconhecimento, por parte de cientistas, de que o missionário genuinamente acredita que seja.

Os missionários precisam admitir que a preocupação da academia não é sem fundamento, enxergando, compreendendo e revisitando os equívocos históricos que ainda podem comprometer sua atuação. Não é demais pontuar que, em nome do cristianismo, historicamente se tem promovido uma série de agressões aos povos tradicionais. Por outro lado, cabe também delinear uma diferença entre aquilo que é o Evangelho e as práticas que são feitas em nome do Evangelho. Nesse sentido, relatos como aquele divulgado por matéria publicada esta semana pela Rede Brasil Atual, sobre missionários que estariam proibindo práticas cotidianas dos povos tradicionais da Amazônia, como o uso cerimonial de rapé, revela que tais missionários partem de um pressuposto errado, ou seja, agem em nome do cristianismo, mas na verdade perpetuam uma visão colonizadora sobre os povos tradicionais.

Por fim, sou incansável defensor do princípio fundamental de que ninguém pode ser proibido de compartilhar sua fé, e que o diálogo entre missionários e povos tradicionais, se for do interesse de ambas as partes, precisa ser assegurado. Ao mesmo tempo, entendo como necessária a regulamentação para ingresso e atuação em terras indígenas, seja por missionários, seja por pesquisadores. Nos últimos anos tem havido importantes iniciativas para assegurar que missionários sejam adequadamente preparados para o encontro intercultural e uma relação respeitosa e dialógica com os povos originários. Nesse sentido, os missionários precisam da academia, assim como academia, na medida em que se preocupa genuinamente com o bem-estar e o destino dos povos tradicionais, deve reconhecer os benefícios que as iniciativas missionárias lhes proporcionam.

* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Cassiano Luz é teólogo e Antropólogo, Diretor Executivo da Aliança Cristã Evangélica Brasileira e Diretor Transcultural da SEPAL - Servindo aos Pastores e Líderes. Foi Presidente da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) e Diretor de Operações da Visão Mundial Brasil. Casado com Eugênia Rosa, pai de Rebeca, Linda, Isaac e Clara Luz. Acompanhe o Cassiano no Twitter e no Instagram.