Ativismo pró-vida ainda é entrave para descriminalização do aborto
No mês passado, a ministra Rosa Weber, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), anunciou que, finalmente, pautaria a discussão sobre a descriminalização do aborto. O tema chegou ao gabinete da ministra pelas mãos do PSOL, em 2017, com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que pede a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês gestação. Rosa Weber prometeu que a tramitação seria rápida. Mas, lá se vão seis anos e até agora nada.
O aborto induzido é considerado crime contra a vida humana, de acordo com o Código Penal brasileiro, de 1940, e prevê detenção de um a três anos para a mãe que provocar o aborto ou que dê permissão para que outra pessoa o faça. Por essa razão, muitas mulheres procuram clínicas clandestinas ou tentam interromper a gravidez em casa mesmo, em condições precárias e perigosas.
Os grupos favoráveis à descriminalização argumentam que o aborto ilegal não inibe a prática e coloca em risco a vida e/ou a saúde das mulheres. Além disso, em países como Portugal e Espanha, a legalização promoveu a queda do número de abortos porque vieram, claro, acompanhadas de campanhas educativas e que permitiam o acesso a métodos contraceptivos gratuitos, sem falar na drástica redução do número de mortes das mulheres.
Por aqui, apesar do aceno da ministra Rosa Weber, o tema continua sem discussão. Ações que tiram a penalização das mulheres acontecem a conta-gotas e demoram anos para serem concluídas. No início deste mês de julho, o ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Reynaldo Soares da Fonseca, trancou uma ação penal contra uma mulher que provocou aborto em si mesma e foi denunciada pelo médico que a atendeu na Santa Casa de Mogi das Cruzes (SP).
O caso ocorreu em 2011, quando uma mulher deu entrada no hospital após passar mal depois de inserir comprimidos de um medicamento abortivo na vagina. Mesmo sem qualquer chance de ser acusado de cúmplice no aborto, já que não teve participação, o médico de plantão, em vez de atendê-la prontamente, chamou a polícia. A mulher foi algemada e interrogada na cama do hospital e recebeu o atendimento médico somente depois da confissão e da lavratura do boletim de ocorrência. Foi acusada de homicídio duplamente qualificado, tentativa de aborto e ocultação de cadáver.
O trancamento da ação ocorreu após uma longa batalha da Defensoria Pública. A acusação ainda argumentou que ela consentiu que o boletim de ocorrência fosse feito. Mas, em seu despacho, o ministro Fonseca afirmou que a mulher somente aceitou “em virtude de ter sido essa a condição do médico para lhe atender”. Por isso, considerou que as provas do crime eram ilícitas por terem sido conseguidas com a violação do direito constitucional ao sigilo entre profissional de saúde e paciente.
O caso relatado acima, que beneficia as mulheres, é exceção. Infelizmente, as mulheres continuam sendo condenadas por conta de denúncias de médicos e outros profissionais de saúde dos locais onde buscam atendimento. Ou por conta de iniciativas dos chamados movimentos pró-vida que encontram respaldo de parlamentares não muito interessados na vida das mulheres. O Estatuto do Nascituro, que vira e mexe é ressuscitado no Congresso, é uma delas.
Mas, nos legislativos municipais e estaduais espalhados pelo país, projetos que defendem “a elaboração de políticas públicas, programas ou projetos de lei voltados à família” também têm ganhado força. E, no meio dessas ações, sempre aparecem ideias para impedir o aborto, inclusive nos casos que são permitidos por lei: gravidez resultante de estupro, feto anencéfalo e risco de morte para a mãe. Temas como união homoafetiva ou direitos da população LGBTQIA+ também entram no pacote, mas em detrimento dos envolvidos.
Aqui em São Paulo, várias cidades estão trilhando esse caminho. Algumas são do interior, como Santa Bárbara D’Oeste, algumas mais próximas da Capital, como Santo André. Coincidentemente (não, coincidências não existem) são cidades que receberam a visita da advogada Angela Gandra quando ela era secretária nacional da Família do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo de Jair Bolsonaro (PL).
Como advogada, Angela representou a União dos Juristas Católicos de São Paulo em uma das audiências no Supremo sobre a ADPF 442. Na ocasião, ela defendeu que a descriminalização seria algo como um “aborto jurídico”. Como secretária e católica “daquelas que vai todo dia à missa” como ela mesma diz, atuou como ativista pró-vida e chegou a defender, em entrevista à revista Marie Claire, a manutenção da gravidez indesejada para a posterior entrega do bebê para a adoção. Como vimos no caso da atriz Klara Castanho, é um processo muito simples em que a mulher é amparada, protegida e não julgada (atenção: contém muita ironia!).
Saindo de São Paulo e indo para Brasília, no último dia 20 de junho, a Capital Federal recebeu a 16ª Marcha Nacional pela Vida, uma iniciativa do movimento Brasil sem Aborto, que se define apartidário e suprarreligioso. O encontro contou com o apoio da Arquidiocese de Brasília e do próprio Governo do Distrito Federal (GDF). As peças de divulgação traziam o apoio da Secretaria da Família e Juventude e a logomarca da gestão do governador Ibaneis Rocha (MDB), que é um ipê amarelo.
Não por acaso, os políticos e personalidades citados acima são conservadores e ligados a igrejas católicas e evangélicas, que enxergam na mulher a missão santificada de ser mãe e ser responsável pela manutenção da vida e das famílias. A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), como já disse aqui em artigos anteriores, não traz uma luz menos conservadora ao debate sobre o aborto e o papel das mulheres para além da maternidade. Até o momento, nem Lula, nem qualquer integrante de seu ministério, parece disposto ou disposta a confrontar o Congresso para debater sobre direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Enquanto isso, a chamada Bancada Evangélica se articula contra a agenda feminista que defende a igualdade de gênero, direitos da população LGBTQIA+, aborto, entre outros temas que envolvem os direitos civis e humanos. E se articula, principalmente, para fomentar que o debate da descriminalização não deveria ser feito no Supremo, mas sim por pessoas que foram eleitas pelo povo para determinar as leis. Com um legislativo cada vez mais conservador, qual seria o resultado disso? Só nos resta aguardar que Rosa Weber coloque o finalmente o assunto na pauta do Supremo. E torcer por um resultado que defenda a vida das mulheres.
* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site
Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.