Até Maria teve a chance de dizer não
A lei 14.786/2023, de autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) e sancionada pela Presidência da República em dezembro do ano passado, foi comemorada por ser uma vitória das mulheres contra o assédio e a violência. Apelidada de “Lei do Não é Não”, o texto prevê a criação de protocolos “no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas”. Ufa! Agora estamos protegidas! Não é não... só que não.
O parágrafo único traz o seguinte: “O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa”. Segundo a Folha de S. Paulo, a inclusão do trecho aconteceu quando o texto foi para votação no plenário, no relatório da deputada Renata Abreu (Podemos-SP). Ainda de acordo com o jornal, foram parlamentares evangélicos que temiam o “uso politizado do instrumento nas igrejas” que se articularam para a exclusão dos espaços religiosos. Segundo os políticos ouvidos pela reportagem, o Não é Não é “uma bandeira associada a movimentos progressistas, poderia ser aplicado para tolher a liberdade de expressão em cultos e também de forma revanchista”.
A deputada Maria do Rosário reclama que o parágrafo ganhou mais destaque que a lei, que crime continua sendo crime etc. Mas não conseguiu explicar o motivo da exceção feita a cultos e eventos religiosos em um texto voltado para bares e restaurantes. O presidente Luiz Inacio Lula da Silva (PT) está tão sedento por apoio de políticos religiosos para aceitar algo assim? Lembro que esses políticos (que não são apenas evangélicos) representam o conservadorismo em forma bruta de algumas denominações religiosas. Mas eles não são o todo. Há líderes progressistas, igrejas inclusivas, movimentos cristãos feministas... por que a aproximação não é feita com esses grupos?
Que bom que a lei foi sancionada depois do julgamento de João Teixeira de Faria, que ficou conhecido como João de Deus. Condenado a mais de 100 anos de prisão por conta dos crimes sexuais cometidos durante os atendimentos espirituais que fazia na cidade de Abadiânia (GO), o autoproclamado médium poderia usar a Lei do Não é Não para se defender das acusações e talvez até se livrar delas. E como ficam os “líderes religiosos” acusados de estupro daqui para frente? Poderão facilmente usar a lei, criada para proteção das mulheres, para se safar dos crimes cometidos.
Os espaços religiosos, refúgio espiritual para muitos, nem sempre são locais seguros para as mulheres. Ao buscar apoio pelas violências sofridas nos ambientes domésticos, elas acabam julgadas, revitimizadas. Às vezes a violência é provocada nesses locais pelos líderes religiosos que abusam do poder e da confiança que usufruem do cargo. Dotados de grande poder de persuasão, intimidam e questionam as vítimas. O não das mulheres é colocado como falta de fé.
Se esquecem da passagem bíblica que é um dos pilares do cristianismo: a anunciação de Maria. Prometida em casamento a José, Maria recebeu a visita do anjo Gabriel que lhe fez a proposta em nome do próprio Deus: ser a mãe de Jesus. Conforme relatado em Lucas 1: 26-38, mesmo sendo o criador todo-poderoso, Deus não obrigou Maria a nada. Consultada, ela respondeu que sim. Mas teve a chance de dizer não.
Milênios depois, as mulheres que frequentam espaços religiosos, cristãos ou não, não gozam exatamente do direito dado à mãe de Jesus. Em 2019, a Agência Pública divulgou números do ministério dos Direitos Humanos sobre violências praticadas por líderes religiosos. Naquela ocasião, a pasta contabilizava 462 denúncias feitas no Disque 100 nos três anos anteriores à divulgação. Desse total, 167 casos envolviam violência sexual.
A então ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, chegou a afirmar que líderes religiosos são os principais abusadores de mulheres e crianças. Ela mesma sofreu abuso do tipo quando criança. Também em 2019, Damares elaborou uma proposta legislativa para agravar pena dos casos de abuso sexual cometido por pessoas ou profissionais que se aproveitam de situações de confiança para cometerem os crimes. A ministra citou líderes religiosos como exemplo.
Esses homens usam a fé e também a vulnerabilidade das mulheres para praticar as violações. Como o pastor goiano Vanderlei de Oliveira que alegava incorporar anjos para abusar sexualmente de fiéis. Ou João (nada) de Deus que fazia questão de afirmar que não tinha desejo pelas mulheres que vitimou. O contato sexual era necessário para a realização do trabalho espiritual. A exclusão dos espaços religiosos da lei diminui as chances de as mulheres dizerem não e fortalece os homens que usam a fé para cometerem seus crimes.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.