As Várias Igrejas Evangélicas no Brasil e o Folclore Cristão Local

As Várias Igrejas Evangélicas no Brasil e o Folclore Cristão Local
Igreja Mundial do Poder de Deus. Créditos: Agencia RBS

Na última semana, viralizou uma carta da Pastora luterana Lusmarina Campos Garcia, endereçada a Lula e a Gleisi, com uma explicação contextual e sugestões para a atuação do PT junto ao meio evangélico brasileiro. Na carta, a pastora faz questão de fazer uma distinção entre as igrejas “fundamentalistas” e “não fundamentalistas”, tomando como base a diferença entre “igrejas que adotam uma abordagem teológica neopentecostal” e “igrejas que adotam uma abordagem teológica não neopentecostal”.

O neopentecostalismo, por sua vez, é colocado pela pastora na origem do movimento que levou ao alinhamento de grande parte dos líderes evangélicos com o programa de Bolsonaro, justamente por conta da postura fundamentalista das igrejas neopentecostais. Nesse sentido, a iniciativa do PT de se afastar dos grandes líderes evangélicos e “se aproximar das pequenas igrejas” seria inócua, uma vez que essas igrejas tem a mesma teologia fundamentalista defendida por esses líderes de denominações pentecostais e neopentecostais, com a única diferença de que essa teologia não é praticada em mega templos, mas em espaços menores.

Toda a argumentação da pastora vai na direção de que o trabalho do governo Lula com as igrejas evangélicas deve ter uma abordagem social, por um lado, e uma abordagem educacional, ao mesmo tempo que evita dar poder a líderes fundamentalistas. Ao invés disso, igrejas históricas deveriam ser privilegiadas no processo, uma vez que parecem imunes a esse processo de alinhamento à extrema direita.

A princípio, parece uma argumentação bastante coerente. No entanto, o texto ignora aspectos importantes do contexto evangélico brasileiro e do processo de alinhamento de grupos evangélicos ao governo Bolsonaro. Enumero aqui as possíveis fraquezas do texto (que segue tendo enormes méritos, ensejando uma discussão extremamente relevante)

  1. O alinhamento ao governo Bolsonaro não é exclusivo de igrejas com teologia neopentecostal. A própria composição do governo Bolsonaro mostra o contrário. Ex-ministros como Jorge Oliveira, André Mendonça (hoje no STF) e Milton Ribeiro tiveram origem na Igreja Presbiteriana do Brasil, uma das igrejas protestantes históricas mais antigas do país (Ashbel Green Simonton, fundador da Igreja Presbiteriana no Brasil, chegou ao país em 1859). A própria Damares Alves tem sua origem na Igreja Batista. A tipificação das igrejas neopentecostais como emanadoras únicas do fundamentalismo religioso não resiste ao exame prático do contexto.
  2. Isso ocorre, em grande medida, por conta de uma certa “neopentecostalização” do meio evangélico brasileiro. Exemplo notório disso é a Igreja Batista da Lagoinha, com sede em Belo Horizonte. Fundada em 1957 como uma Igreja Batista comum, era uma igreja protestante tradicional. Com o tempo, foi adotando a teologia e os métodos de expansão típicos das igrejas neopentecostais. Hoje, é uma igreja com diversas filiais pelo Brasil e a teologia, que originalmente era batista, é fortemente influenciada pelos princípios da teologia da palavra da fé (e também por um forte moralismo conservador). No entanto, a igreja segue se identificando como uma igreja batista, o que gera confusão até mesmo em classificações e em estudos. Esse fenômeno ocorre em inúmeras outras igrejas, e, ainda que a Pastora Lusmarina coloque como solução que Lula tenha um olhar mais benéfico para as igrejas protestantes tradicionais, é inegável que grande parte dessas igrejas passaram por um processo de neopentecostalização, que talvez não seja tão radical quanto o da Igreja Batista da Lagoinha, mas que transformou posturas internas e liturgias de culto.
  3. Essa neopentecostalização é um elemento do folclore cristão brasileiro. A estrutura que as igrejas neopentecostais criaram entre os anos 1980 e 1990 para difusão do conteúdo de suas igrejas atingiu o evangélico como um todo, do tradicional ao pentecostal. Isso ocorreu (e segue ocorrendo) porque o evangélico, em sua experiência de fé, sempre teve uma postura muito proativa: além de assistir os cultos, o evangélico busca uma maior proximidade com Deus ouvindo pregações no rádio e na TV, ouvindo louvores no rádio, e consumindo produtos recomendados por pastores, como livros, músicas e filmes. Em certo momento, praticamente todo esse conteúdo era de origem neopentecostal. Muitos evangélicos tradicionais assistiam aos meios de difusão de igrejas como a Universal do Reino de Deus, a Internacional da Graça de Deus e a Renascer em Cristo porque eram os únicos aos quais eles tinham acesso. Isso teve papel essencial na formação do pensamento de toda uma geração de evangélicos, justamente a geração que chegou a igreja no momento de explosão no número de evangélicos no Brasil. Com isso, a cosmogonia neopentecostal, com todas as suas idiossincrasias, foi cristalizada entre evangélicos de diferentes vertentes, a ponto de até hoje muitos evangélicos de vertentes mais tradicionais seguirem acreditando no dispensacionalismo enquanto explicação para a volta de Cristo. E muitos cristãos tradicionais também adotaram e passaram a defender o estilo de vida materialista típico da fé neopentecostal.
  4. O folclore cristão brasileiro, no entanto, vai muito além da neopentecostalização. A fé evangélica brasileira tem sua própria identidade. Essa identidade por muito tempo separou as igrejas tradicionais das igrejas pentecostais. Enquanto as igrejas protestantes tradicionais prezavam pela formação teológica e por uma vida baseada no ascetismo e na sobriedade, atuando sobretudo na classe média e na classe alta da sociedade, nas igrejas pentecostais esse ascetismo se manifestava de forma mais direta, através dos grupos de oração de irmãs e irmãos, da pregação leiga, guiada pelo Espírito Santo, e pela manifestação dos dons do Espírito, com atenção especial para a glossolalia (falar em línguas estranhas), para as curas divinas e para as profecias. Essa modelagem de igreja pentecostal teve muita aceitação entre as classes mais pobres da sociedade e, por muito tempo, o ato de frequentar a igreja e se declarar evangélico era quase um seguro contra o ingresso na criminalidade em áreas vulneráveis. O evangélico não bebia, não ia para o bar, não se envolvia no tráfico de drogas. Embora esse cenário tenha se tornado mais fluido, essa vida de oração, ascética, sem vícios e crimes, era (e ainda é) um elemento poderoso de coesão social nas áreas mais vulneráveis, especialmente nas grandes cidades.
  5. No entanto, essa vida ascética tem um preço: as igrejas são centralizadas e tem uma teologia literalista, no sentido de que interpretações conservadoras do texto bíblico são tidas como literais. Esse modelo teológico dá margem para coisas como machismo e LGBTfobia dentro da comunidade, com base em interpretações próprias do texto bíblico, mas também forma estruturas muito insuladas, com a liderança centralizada em torno da figura do pastor. É por isso que a promoção de políticas sociais e educacionais nesses locais é tão difícil: eles geralmente estão sob comando de um pastor centralizador, que é uma liderança leiga, mas é aceito como autoridade espiritual por toda a comunidade. É uma aceitação mística: o pastor da igreja pentecostal tem o mesmo poderio místico de ser o canal de comunicação direto com o divino que um Pagé nas religiões indígenas ou que um pai ou mãe de santo nas religiões de matriz africana. Qualquer tentativa de comunicação política que passe por cima dessa autoridade está fadada ao fracasso.
  6. E, finalmente, é preciso compreender que essa vida em comunidades tem efeitos práticos. As pessoas largam vícios, mas também formam redes de colaboração, em geral ligadas a profissões de baixa qualificação, como vendedor ou lojista. Igrejas pentecostais tem muitas pessoas que se tornam empreendedoras por necessidade. Eventualmente esses negócios crescem e prosperam. Isso mostra não só a “graça de Deus” pela pessoa, mas também permite que essas pessoas empreguem outros irmãos, consigam sociedades na igreja, clientes e até mesmo aconselhamento sobre como tocar o seu negócio. Isso é especialmente forte em igrejas pequenas. Qualquer tentativa de atuação política dentro das igrejas – algo que sempre é visto com ressalvas – tem que partir do respeito prévio a igreja como elemento de coesão social. Coisa que o bolsonarismo, por incrível que pareça, faz bem, usando o neopentecostalismo como ferramenta teológica para justificar uma mentalidade empreendorista, a ponto disso cair por vezes em exageros óbvios, como a confusão entre o discurso pastoral e o discurso de coach (o maior expoente dessa confusão hoje é Pablo Marçal)

É por isso que toda análise sobre a atuação política em igrejas, sejam elas grandes ou pequenas, deve tomar o devido cuidado. A separação entre tradicionais e neopentecostais é muito mais fluida do que parece, e a igreja segue sendo elemento de coesão social mesmo sob uma lógica neopentecostal. Se é possível de fato estabelecer uma atuação política nas igrejas, isso precisa ser respeitado. As igrejas, querendo ou não, seguem tendo um forte viés comunitário, especialmente nas áreas mais vulneráveis, onde as pessoas de fato dependem mais umas das outras para sobreviver.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Leonardo Rossatto Queiroz, Cientista Social (UNICAMP), Pós Graduado em Cidades Inteligentes e Sustentáveis (UNINOVE), Especialista em Políticas Públicas no governo do estado de São Paulo, Mestre em Planejamento e Gestão do Território (UFABC), concluindo o Doutorado em Ciências do Sistema Terrestre (INPE), pesquiso implementação e avaliação de políticas públicas, perfil político de grupos religiosos e ação institucional contra as mudanças climáticas em escala municipal.