A violência contra a mulher não tem cor, classe social ou crença
Talvez você que me lê agora, assim como eu, não sabia quem era Cintia Chagas até que pipocassem notícias sobre a queixa de abusos psicológicos e físicos que ela fez contra o marido, o para mim também até então desconhecido deputado estadual Lucas Bove (PL-SP). Soube do caso não pela repercussão contra o agressor, mas sim contra ela. “Bem-feito”, “experimentou o próprio veneno”, “de vítima não tem nada” foram alguns dos comentários menos agressivos.
O motivo de tanta raiva contra ela foi uma declaração feita por Cíntia em suas redes sociais, supostamente respondendo à seguinte pergunta de uma seguidora: “MULHERES SUJEITAI AOS VOCÊS (sic) MARIDOS. Passagem BÍBLICA que rebaixa a MULHER. Como vê”? O trecho em questão refere-se à carta de Paulo aos Efésios, capítulo 5, versículo 22.
A influenciadora formada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e que ficou famosa ao dar dicas de língua portuguesa nas redes sociais respondeu: “a mulher precisa se submeter ao homem? Precisa! Quando eu digo se submeter eu me refiro a ação de deixar o homem ser homem. A ação de não castrar o homem e a ação de ser sim, em vários momentos, submissa. Porque uma relação se torna longínqua e feliz quando a mulher assume o papel dela e o homem assume o papel dele. Por exemplo, você que é casada: o jantar só pode ser servido depois que o seu marido, e não esposo, porque esposo é muito cafona, depois que o seu marido chegar. O horário da casa deve girar em torno dele e não da sua vida, ainda que você ganhe mais do que ele. Você sempre será mais submissa. Há situações em que você deverá pedir, sim, permissão a ele. E ele, por sua vez, será mais doce, mais cordial com você”.
Como feminista, ver uma mulher rica, elegante, linda e conhecida nas redes sociais pelo português perfeito defender uma coisa dessas fez meu estômago doer. Mas, como feminista, não posso compactuar com o sentimento de revanche sobre o sofrimento dela. Há mulheres que merecem ser agredidas e violadas? Não! Depois de toda a repercussão sobre a denúncia dela contra o agora ex-marido, ela se desculpou. Disse que a fala foi infeliz e suscetível a interpretações que contrariam sua própria vida. Mas, o mal já estava feito.
Assim como qualquer outra mulher que sofre uma agressão física e/ou psicológica de um homem, seja seu companheiro, seu marido, um colega de trabalho ou até mesmo de um estranho, a culpa recaiu em Cintia. A revitimização das mulheres não tem cor, classe social ou crença. A culpa será sempre da mulher onde quer que ela busque ajuda. A sociedade brasileira ainda é capenga e hesitante quando se trata de sororidade. E apesar do discurso de que Jesus é amor, também não é nas igrejas que as mulheres recebem acolhimento. O mesmo versículo usado para questionar Cintia é apresentado como receita certa de casamento sólido e feliz pelas lideranças religiosas.
No entanto, a submissão, colocada como comportamento ideal feminino cristão, não livram as mulheres de maridos violentos. No livro O grito de Eva – a violência doméstica em lares cristãos, Marília de Camargo César, minha colega neste Observatório Evangélico, relata uma série de histórias em que mulheres agredidas, ao buscarem ajuda nas igrejas que frequentam, recebem, geralmente, um único conselho: ore pelos seus maridos. Se ela ousar denunciar o agressor à polícia são julgadas e criticadas, inclusive por outras mulheres. Como igreja e sociedade costumam repetir padrões machistas, Cintia passou pela mesma situação.
O casamento que parecia ser dos sonhos durou apenas três meses. Cintia relatou que as agressões começaram quando ela se recusou a posar para uma foto ao lado do ex-presidente Jair Bolsonaro e da mulher Michelle em uma festa de casamento onde todos estavam. Ela conseguiu uma medida protetiva e o caso corre em segredo de justiça, mas Cintia já pediu a prisão do ex-marido por descumprimento das regras judiciais. Deputadas do PT e do PSOL pediram a cassação de Lucas Bove por violência doméstica, mas a comissão de ética da Assembleia Legislativa (Alesp) ainda não se pronunciou.
Enquanto isso, Bove posa de coitadinho nas redes sociais, com fotos com esparadrapo na boca onde se lê “segredo de justiça” e em postagens em que alega estar “com o coração ferido” porque jamais agrediria uma mulher. Mas, circula sem problemas nos eventos oficiais, ao lado do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Tanto que representou a Alesp no leilão das escolas públicas na B3, ocorrido no último dia 29.
Mesmo não tendo, aparentemente, qualquer influência sobre o programa de privatização governamental, Bove afirmou em vídeo gravado durante o evento: “nós vamos privatizar o Estado de São Paulo inteiro. Vamos privatizar escola, vamos privatizar o Metrô para 'pelegada' perder emprego. Vamos privatizar a Fundação Casa, vamos privatizar tudo no Estado de São Paulo. Absolutamente tudo”. Ao vê-lo na porta da B3, a presidenta do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, Camila Lisboa, o chamou várias vezes de agressor de mulher e privatista. De costas para Camila, Bove ajeitava o topete olhando pelo celular fingindo indiferença. Depois virou-se, pôs as mãos na cintura e riu.
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Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.