A vaidade é meu pecado favorito

A vaidade é meu pecado favorito
Crédito: O Globo

A citação acima ocorreu no final do filme O Advogado do Diabo, pronunciada pelo advogado John Milton, vivido por Al Pacino. Normalmente ela está atrelada, no meio evangélico, aos cuidados com a estética. Há grupos que enxergam no cuidado com o corpo, com o visual, uma porta para o pecado, motivo pelo qual proíbem o uso de maquiagem, o corte de cabelo, o pintar as unhas... Curiosamente, sobram excessos de cuidados sempre destinados ao controle do corpo feminino.

Todavia, a vaidade que mata e sobre a qual muito pouco é falada, é a do profeta. Profeta é aquele que tem por missão dar o recado de Deus, de transmitir a mensagem de Deus. Recados que podem ser denúncias sobre a realidade vigente (Micaías em I Reis 22), descortinamento de situações (um bom exemplo disso é o texto de Ezequiel 8) ou mesmo prenúncio de eventos futuros (Daniel 8). Tais profecias sempre vieram em diferentes invólucros: visões, sonhos, percepções, transes, etc. Sua entrega ao povo normalmente vinha embebida com a fórmula “assim diz o Senhor”.

Ora, quando o profeta ergue sua voz ou assume o púlpito para anunciar a mensagem de Deus, em certo sentido o faz representando o próprio Senhor. O critério de avaliação profética, desta feita, nunca advém do uso da fórmula inicial, e sim do cumprimento daquela palavra, ou de sua atestação entre os presentes, numa subjetiva experiência espiritual de confirmação. Neste sentido, se aquilo que foi revestido de caráter profético não se cumprir, logo, a profecia, a mensagem, não teria sua origem na parte de Deus. Nesses casos, o profeta falou por presunção (Dt.18:20-22), uma espécie de cúmulo da vaidade, pois coloca suas palavras na boca de Deus.

Dois detalhes a mais: conquanto o profeta possa iludir, enganar, ele não corre o risco do autoengano (I Cor.14:32). Por esta razão, ao colocar uma palavra na boca de Deus através da falsa profecia, seu fim, segundo o primeiro testamento, deveria ser a morte.

A questão, então, é: por que tanta gente segue dando espaço de um tríplex nos seus ouvidos para tantos autointitulados profetas que reiteradamente anunciaram a reeleição do candidato vencido nas urnas? Ora, os ouvidos do povo evangélico deveriam estar mortificados, vacinados, contra qualquer sonoridade advinda de tais figuras. Entretanto, não é isso o que tem acontecido. Tais vozes seguem tendo a primazia, enquanto as que repercutem o coração de Deus foram silenciadas sob o manto ideológico.

Um dos resultados da fixação na falsa profecia é a desconexão da realidade. Tal desconexão faz com que pessoas tentem adequar a realidade à profecia ouvida. É nesse momento que teorias conspiratórias absurdas ganham espaço e as ilusões fantasiosas e fantasmagóricas passam a povoar as mentes, alucinando boas pessoas. A tentativa de compactar a realidade à profecia é campo fértil para a manipulação e distorção. Sem contar que a Palavra de Deus não precisa de nenhuma compactadora humana para ser cumprida, sob o risco de não ser algo oriundo genuinamente da boca de Deus.

Ao que parece, para boa parte da Igreja no Brasil, Deus é extremamente conservador (contra biquínis, embora Adão e Eva estivessem nus), fundamentalista (só serve como expressão, enquadramento, da minha imagem e semelhança), de direita (quem está na canhota divina, se Jesus está à destra?), e Pai (inclusive do capitalismo). Nada poderia soar tão herege e tão vaidoso quanto isto.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Contato: sdusilek@gmail.com Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas.