A infindável batalha das feministas cristãs

A infindável batalha das feministas cristãs

Ser feminista e ser cristã não é nada fácil. Os dois adjetivos são colocados hoje como incongruentes e conflitantes. Para muitas lideranças religiosas e, infelizmente para algumas mulheres também, uma mulher feminista é a antítese da mulher cristã: são taxadas de egoístas, negligentes, contrárias à vida e destruidoras das famílias tradicionais. Com essas palavras – e outras mais agressivas – foram tratadas as representantes dos movimentos Católicas pelo Direito de Decidir e Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero ao lançar um documento[1] que, em linhas gerais, é contrário ao Estatuto do Nascituro, tema que, volta e meia, volta a circular pelo Congresso Nacional. O Estatuto prevê, por exemplo, a criminalização de todo tipo de aborto, inclusive daqueles que já estão previstos em lei (gravidez resultante de estupro, risco de vida à mãe e anencefalia do feto).

No texto, intitulado Cristãs em defesa da legalização do aborto e pela vida das mulheres, as entidades signatárias afirmam que tratar o aborto como um pecado “serve, única e exclusivamente, para reforçar a teologia punitivista e culposa sobre a vida de mulheres que, em sua maioria, já se encontram em situação de extrema vulnerabilidade”. E apontam que a postura dos líderes religiosos é descolada “da realidade da vida das mulheres, que carregam a responsabilidade do cuidado sobre seus filhos que, muitas vezes, não possuem nas certidões o nome do pai”.

Os críticos se espantam que essas mulheres se denominem cristãs. Como, se aborto para eles é assassinato? Não importa que o texto defenda a vida das mulheres. É como se isso fosse algo menor. A atuação de Católicas pelo Direito de Decidir já foi, inclusive, alvo da Associação Dom Bosco, formada por católicos conservadores, que entrou na justiça para que a organização fosse proibida de usar “católicas” em seu nome.

A ação foi acolhida inicialmente em 2020 pelo desembargador José Carlos Ferreira Alves, da 2.ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Em seu despacho, o juiz disse que o movimento não poderia utilizar mais o nome por não ser “minimamente racional e lógico, ademais, o uso da expressão ‘católicas’ por entidade que combate o catolicismo concretamente com ideias e pautas claramente antagônicas a ele”. A discussão no judiciário se manteve até que, em 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a organização pode manter a referência à religião em seu nome.

Acusadas de usarem o discurso religioso para promover as pautas da esquerda, a batalha das feministas continua e será cada vez mais árdua. Principalmente porque do outro lado da disputa estão mulheres cristãs que se apresentam como antifeministas, como a ex-ministra da Mulher e hoje senadora Damares Alves (Republicanos-DF). Juntamente com outros 16 senadores, entre eles nomes fortes do bolsonarismo, como Flávio Bolsonaro (PL-RJ), Damares será a vice-presidente da Frente Parlamentar Evangélica no Senado.

Apesar do nome, o grupo reúne parlamentares conservadores de outras denominações religiosas, como católicos e espíritas. Entre eles, quatro senadores de partidos da base do governo Lula: Vanderlan Cardoso (PSD-GO), Eliziane Gama (PSD-MA), Jorge Kajuru (PSB-GO) e Soraya Thronicke (União Brasil-MS).

A Frente será presidida pelo senador Carlos Viana (Podemos-MG) que ainda mantém o discurso de garantia da manutenção dos direitos que já foram conquistados pelas mulheres. Mas, o cargo de vice não tira o protagonismo de Damares, incansável lutadora contra o aborto (mesmo o legal) e defensora de outras pautas que sempre levam o selo de “defesa dos valores cristãos”. Tanto que a atual ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves, já declarou em entrevista que, com a atual configuração do Senado, as mulheres tendem a perder seus direitos caso o aborto seja colocado em discussão.

As possíveis decisões conservadoras de Brasília podem parecer distantes da maioria das pessoas, mas para quem é de São Paulo os impactos poderão ser sentidos mais rapidamente. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) nomeou como secretária estadual de Política para Mulheres, Sonaira Fernandes, do mesmo partido.

Representante do chamado bolsonarismo raiz, Sonaira Fernandes trabalhou no gabinete de Eduardo Bolsonaro e contou com a participação do então presidente Jair Bolsonaro em vídeo para sua campanha à Câmara Municipal em São Paulo, sendo eleita em 2020. Em suas redes sociais, Sonaira se declara antifeminista, antiaborto, defensora da fé e dos princípios cristãos. Se diz orgulhosa de nunca ter precisado de cotas ou do feminismo para chegar aonde está. E garante que nunca sofreu preconceito por ser negra, nordestina ou mulher, mas sim por ser cristã.

Entre os dias 20 e 24 de março últimos, a secretária organizou a Semana Una-se, Mulher, evento que, segundo o site do governo estadual, tratou de um ciclo de palestras e exposições em continuidade às comemorações do Dia Internacional da Mulher. A programação listava atendimentos na área de empreendedorismo, promoção da saúde e combate à violência. Mas contou, principalmente, com palestras e participações de ativistas autointituladas pró-vida e conhecidas pelos posicionamentos contrários ao aborto, mesmo nos casos previstos em lei.

O governador Tarcísio já se declarou contra o aborto. Mas, em discurso de campanha, prometeu seguir o que a legislação já prevê. Sonaira, não. Ela é abertamente favorável ao Estatuto do Nascituro e participou de vigília antiaborto realizada em março de 2022 em frente ao antigo Hospital Pérola Byington, em São Paulo, quando era vereadora.

A secretária garante que trabalha para ampliar e fortalecer os direitos das mulheres. Mas a julgar pelas suas posições na mídia e nas redes sociais, serão os chamados “valores cristãos” e o discurso antifeminista que pautarão as políticas públicas apresentadas para as mulheres paulistas. Mais uma dura batalha pela frente.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na Cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte do GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo), ambos grupos de pesquisa vinculados ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP.


[1]https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSfcKD0jefeZ4NDJSC-2WNlE0HHZov1HyZTOOI_k388LrB8FZQ/viewform