A favor do aborto dos homens
As mulheres são criminalizadas pela prática do aborto, mas os homens, não.
Nas eleições passadas diversas candidaturas repetiram: “somos a favor da vida e contra o aborto”, e mais recentemente, a Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB e a Convenção Geral das Assembleais de Deus no Brasil - CGADB emitiram notas reafirmando essas posições.
Então, aborto denunciado como crime e/ou pecado é um problema apenas das mulheres? Em síntese: aceitando a definição de que aborto é matar uma vida, então, são apenas as mulheres que matam? Uma mulher ao decidir fazer um aborto ela o faz: 1. Em benefício de sua própria vida, em detrimento da vida da criança? 2. Por questões estéticas e econômicas, e, por fim, por mero comodismo pessoal? Enfim, é uma decisão realizada por ela sozinha, afinal, ela também engravidou sozinha...
E o homem que a engravidou, depois sumiu, a abandonou, omitiu a paternidade e negou o sustento? Se a mulher mata uma vida, o homem mata muitas: a da mulher, da criança, a sua e diversas outras em torno. Religiões e candidatos condenam com veemência “abortos praticados por mulheres”, mas não dizem nada sobre “abortos praticados por homens”?
Uma sociedade de homens assassinos, mas de mulheres castas.
A história é antiga e conhecida. Um grupo de canalhas leva uma mulher “pega em flagrante adultério” à presença de Jesus e o provoca: “a lei nos diz que ela deve ser apedrejada”. Jesus responde com clássica e enigmática frase: “quem não tem pecado, atire a primeira pedra”.
Esses homens de bem, zelosos da moralidade publica, cuidadosos da sexualidade feminina, preocupados com a perversão sexual das mulheres, explicitam uma tara: homens podem e querem ser assassinos, mas as mulheres precisam ser castas. Eles querem uma sociedade de homens armados, matadores, assassinos, mas as mulheres precisam ser controladas. Iguais aos de hoje: homens podem transar, abandonar e matar os filhos. Alias, essa mulher “pega em flagrante adultério”, foi levada sozinha para ser apedrejada. Elas que engravidam ou adulteram sozinhas, também são apedrejadas sozinhas; eles que são e gostam de ser assassinos continuam de pedras nas mãos.
Outro episodio bíblico muito usado para criminalizar a sexualidade é o episodio dos anjos na casa de Ló. Considera-se como o cumulo da perversão que os homens da cidade de Sodoma queiram “conhecer” (no sentido bíblico...) os visitantes em sua casa. Os sodomenses, conhecidos pejorativamente como “sodomitas”, aliás se tornam símbolo de devassidão sexual e culpados pela destruição da cidade – algo que o profeta Ezequiel desmente, mas isso é outra historia.
Mas passa desapercebido – propositalmente? – a atitude de Ló. Ele oferece suas duas filhas adolescentes à turba assassina. No ethos patriarcal de Ló ele é dono da casa, dono das coisas da casa, e assim, suas filhas adolescentes são apenas objetos da casa; e, ele, dono de tudo, as tornam objetos de barganha. Modelo que não tem condenação, porque o patriarcado das lideranças religiosas – para citar apenas essas – continua igual. Nessas instituições as mulheres continuam sendo preteridas, ou excluídas oficialmente; seus interesses estão sujeitos aos interesses – ou mais especificamente, as taras - dos homens, enquanto isso, as taxas de feminicídio continuam a crescer nesse país majoritariamente cristão, mas o que a CNBB, CGADB e demais tem a dizer as mulheres?
Coincidência essas instituições serem formadas exclusivamente por homens? Na casa de Ló, episodio do apedrejamento, CNBB, CGADB e demais, temos uma repetição: são homens falando para homens, sobre assuntos de homens. E as mulheres? Lá, como cá, elas estão no mesmo lugar: apedrejadas, culpadas, caladas, abusadas e assassinadas. A única distinção nessa história foi o posicionamento de Jesus. Ele não criminaliza a mulher e expõe de forma cabal a hipocrisia machista, talvez por essa e outras mais, as vezes, não conseguimos ver ponto em comum dessas instituições com Jesus.
¹"Ora, este foi o pecado de sua irmã Sodoma: Ela e suas filhas eram arrogantes, tinham fartura de comida e viviam despreocupadas; não ajudavam os pobres e os necessitados. Eram altivas e cometeram práticas repugnantes diante de mim. Por isso eu me desfiz delas conforme você viu”. Ez. 16:49-50.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Gedeon Alencar é doutor em ciências da religião-PUC-SP, é membro do Grupo de Estudos do Protestantismo e Pentecostalismo- GEPP-PUC-SP, da Comissão de Historia da Igreja na América Latina e Caribe -CEHILA e da Rede de Latinoamericana de Estudos Pentecostais-RELEP, autor dos livros Protestantismo Tupiniquim. Hipótese sobre a (não) contribuição evangélica à cultura brasileira, Matriz Pentecostal Brasileira. Assembleias de Deus 1911-2011, Ecumenismos & Pentecostalismos. A relação entre o pescoço e a guilhotina e Filemom. Essa carta deveria ter sido escrita? Casado com Diana Freire e ambos se congregam na Igreja Betesda-SP. Acompanhe-o pelo Instagram.