A articulação da bancadas cristãs na Câmara é uma ameaça real ao direito legal de abortar
Em um país como o Brasil, onde, em 2023, 154 meninas de até 14 anos realizaram aborto legal após terem sido violentadas, tal direito não deveria nem ser questionado. Devido ao contexto, a admissão do aborto nos casos já previstos em lei — risco de morte à gestante, estupro e anencefalia do feto — deveria ser bem aceita por todos, independentemente do fator religião, afinal, trata-se de uma questão de bom senso. No entanto, no Congresso Nacional, existem duas bancadas cristãs — constituídas de evangélicos e católicos — bastante articuladas e que estão se movimentando para que o aborto legal esteja com os dias contados. E, para quem duvidava da força política desse grupo, segue uma notícia bem recente: a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara aprovou, no último dia 27, por 35 votos a 15, uma proposta que garante a vida do feto desde a concepção e, portanto, impede o aborto legal.
Trata-se da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 164/12, que dá uma nova redação ao caput do artigo 5º da CF, o qual atualmente diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”. Caso a PEC seja aprovada em Plenário, o trecho destacado passará a ser redigido como “direito à vida desde à concepção”, o que anula o artigo 128 do Código Penal - que julga como aborto necessário a gravidez que coloque em risco a vida da mãe e aquela decorrente de estupro -, além de invalidar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em 2012, liberou a interrupção de gravidez de feto anencéfalo. Há, ainda, o agravante de que a mudança no texto constitucional pode vir a comprometer as pesquisas com células-tronco embrionárias, aprovadas no Brasil pelo STF em 2008. A aprovação desta PEC significa, portanto, um verdadeiro retrocesso.
A proposta, que vem sendo chamada por seus opositores de PEC do estuprador, foi elaborada pelos ex-deputados Eduardo Cunha (RJ) e João Campos (GO). Ambos compuseram a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional (FPE), sendo o primeiro membro da Assembleia de Deus (AD) de Madureira enquanto o delegado de polícia é pastor da AD de Vila Nova, em Goiás.
Dos 35 parlamentares que votaram a favor da PEC, 18 são da FPE e oito da Frente Parlamentar Católica Apostólica Romana. Ou seja, cerca de 74% dos deputados que defendem a criminalização do aborto em qualquer situação fazem parte das bancadas cristãs que, embora sejam divergentes nas doutrinas, mantêm-se unidas no Congresso nas questões que atravessam a pauta dos direitos reprodutivos das mulheres.
Quem acompanhou a votação na CCJ, no dia 27, presenciou o atentado à democracia e a chuva de argumentos pautados na religião em defesa da proposta. A presidente da Comissão, a deputada Caroline de Toni (PL-SC) afirmou, inicialmente, que a votação ocorreria a portas fechadas, sem a presença da imprensa e de manifestantes, o que foi questionado por deputados da esquerda. Por fim, a parlamentar do PL permitiu a entrada dos jornalistas, mas as pessoas que manifestavam contra o projeto, portando cartazes e faixas com as frases “criança não é mãe” e “estuprador não é pai”, continuaram barradas da reunião.
Um dos grandes expoentes da sessão foi o discurso da deputada Simone Marquetto (MDB-SP), que se denominou como “pró-vida, católica apostólica romana e obediente ao autor da vida que é Deus”, além de “relatora do grande autor da vida”. Com a justificativa de que a grávida violentada tem a opção de entregar o filho à adoção, ela manifestou o seu apoio à PEC e disse estar confiante de que “o grande coração de Nossa Senhora vai triunfar por todos os filhos que nós vamos estar poupando da morte”. Para Marquetto, o aborto não apaga a dor emocional decorrente de um estupro, no entanto, ela desconsidera o sofrimento psíquico de carregar no ventre uma criança indesejada que é fruto de uma violência, além do risco de morte que estão sujeitas as meninas menores de 14 anos grávidas nesse contexto.
Já a relatora da proposta, a deputada Chris Tonietto (PL-RJ), afirmou veementemente que não se trata de uma pauta religiosa, embora os argumentos usados pelos seus defensores para sustentá-la não tenham qualquer embasamento científico. A definição de que a vida começa na concepção é justificada mediante embasamento bíblico, tendo em vista, nas palavras de Marco Feliciano (PL-SP), que “antes de me formar, diz o profeta Jeremias, o Senhor já me conhecia”. Para o pastor assembleiano, então, esse trecho da Bíblia é um argumento suficiente para classificar como assassinas mulheres e crianças que queiram recorrer ao aborto após terem sido estupradas.
O cenário de contrassenso se tornou ainda maior com o discurso do deputado Eli Borges (PL-TO), pastor da Assembleia de Deus e membro da FPE. A seguir, a fala do parlamentar:
Interessante são aquelas mães que têm dignidade, que respeitam uma gravidez, mesmo em casos de estupro, mas adotam uma gravidez com um sentimento de maternidade. Elas procuram o judiciário e o judiciário vai atrás do pai e vão atrás do DNA, ou seja, se isso existe é a prova de que a ciência, a biologia está em evidência. Ou seja, eu não conheço onde inventaram essa frase de que a criança não tem o seu direito de fala no processo onde o pai pode falar e às vezes é convocado pelo judiciário para falar porque o DNA determina, porque aquilo é ciência e biologia, a mãe pode falar e a criança não pode falar. Ela é uma vítima inocente na barriga de uma mãe e não estão querendo dizer que isso é um assassinato de inocentes. Claro que é! É um absurdo, mas que Deus tenha misericórdia do Brasil e que continuemos sendo as vozes de defesa dos inocentes que precisam do nosso grito para ter o direito de viver assim como todos nós temos o direito de viver. Que Deus abençoe.
Escutei várias vezes o discurso de Borges, tentando compreender em que medida a sua fala justifica cientificamente a não admissibilidade do aborto, mesmo em casos de estupro. Ao sair em defesa do embrião, o deputado se atreve a chamar as vítimas de estupro que desejam interromper a gravidez de mulheres “sem dignidade”. Além de se perder completamente durante a sua argumentação, o pastor assembleiano prova o quanto o discurso religioso pode ser misógino e disciplinador sobre os corpos das mulheres que são duplamente punidas: por seus abusadores e pelo sistema legislativo, que deveria protegê-las.
A PEC 164/12 agora segue para ser analisada em uma comissão especial para, então, ser votada em Plenário, quando precisará de ao menos 308 votos favoráveis, em dois turnos. Há aqueles que duvidam que uma proposta tão bizarra como esta conte com o aval de tantos parlamentares. No entanto, os 35 deputados que apertaram o “SIM” no painel da CCJ dão o indício de que a mudança no texto constitucional não é uma hipótese tão remota assim. Enquanto houver pastores de terno, travestidos de parlamentares que têm a Bíblia como Carta Magna, direitos duramente conquistados seguirão ameaçados.
O problema não está no fato de o sistema legislativo contar com deputados religiosos, até porque vivemos em uma democracia. A gravidade do cenário político brasileiro é que há cada vez mais parlamentares que colocam a religião à frente de sua função como legisladores. Difícil agora é saber como a sociedade civil pode ser uma resistência efetiva diante desse contexto, no qual o destino de milhares de mulheres e crianças abusadas está nas mãos de uma maioria de religiosos que parece estar no Congresso Nacional brincando de serem parlamentares.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Michelli Possmozer é Doutora em Sociologia Política, Mestra em Ciências Sociais e graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Possui experiência como repórter de jornal impresso, comunicação institucional e pesquisas nas áreas de Religião e Política, Sociologia Urbana, Sociologia da Violência, Desenvolvimento Urbano e Políticas Públicas.