A aprovação do pacote anti-STF revela o “caça às bruxas” protagonizado pelas bancadas cristãs

A aprovação do pacote anti-STF revela o “caça às bruxas” protagonizado pelas bancadas cristãs

O resultado das votações que ocorreram na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) no último dia 9 deixou bem claro os motivos pelos quais se quer tanto calar o Supremo Tribunal Federal (STF). Foram aprovadas quatro proposições que fazem parte do chamado “pacote anti-STF”: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/2021, que proíbe decisões monocráticas, ou seja, aquelas proferidas por um único juiz; o Projeto de Lei (PL) 4754, que define a usurpação do poder legislativo pelo STF como crime de responsabilidade; a PEC 28/2024, que permite ao Congresso Nacional suspender decisão do STF, e o PL 658/2022, que cria nova possibilidade de crime de responsabilidade para ministros do Supremo.

 

Ao que tudo indica, as bancadas católica e evangélica são as mais interessadas na tramitação dessas proposições, já que mais de 70% dos votos favoráveis são de membros da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional (FPE) e da Frente Parlamentar Católica Apostólica Romana. Esse cenário mostra o verdadeiro “caça às bruxas” que vem sendo protagonizado por essas bancadas religiosas, uma vez que, para esses parlamentares, decisões do STF têm representado uma afronta aos valores cristãos.

 

A deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ), integrante da Frente Católica, foi uma das que listou alguns motivos para a preocupação dos defensores da família e da vida no Parlamento. Para ela, essas proposições combatem o que ela chamou de “ativismo judicial”. O primeiro caso que ela trouxe foi a decisão do STF de permitir que a mulher aborte em situação de feto anencéfalo. Na época, em abril de 2012, o ministro Marco Aurélio, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, entendeu que manter uma gravidez em que o feto não vai sobreviver é o mesmo que submeter a mulher a uma espécie de cárcere privado dentro do próprio corpo. Sobre isso, Tonietto argumentou:

 

“A nossa Constituição Federal é muito clara no seu artigo 5º ao tratar, como cláusula pétrea, da inviolabilidade do direito à vida. Então, quer dizer, se a vida é inviolável, não precisa nem ter um marco ‘ah, é desde a concepção!’. Isso o próprio biólogo já determinou, será que cabe ao jurista subverter essa ordem que é literalmente biológica? Será que o juiz pode perverter aquilo que a própria ciência já testou, que a vida começa na concepção? [...] Eu sei que sou voto vencido, mas eu defendo que sequer o artigo 128 do Código Penal deveria ter sido recepcionado, porque colide com o espírito constitucional. Colide na medida em que a Constituição fala da inviolabilidade, não existem exceções.

 

A deputada, inclusive, é autora do Projeto de Lei (PL) 434/2021, que institui o Estatuto do Nascituro e proíbe o aborto até em casos de estupro e, atualmente, aguarda designação de relator na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMULHER). Já o segundo caso citado por Chris Tonietto foi a decisão do STF sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510, ajuizada pela Procuradoria Geral da República para contestar o uso de células-tronco embrionárias para fins terapêuticos e de pesquisa, o que é permitido hoje pela Lei de Biossegurança. Em maio de 2008, o STF entendeu que tal utilização não viola a vida e nem a dignidade humana e, portanto, garantiu a vigência da Lei. No entanto, ainda tramita no Senado o PL 5153/2020, que criminaliza a utilização de células-tronco decorrentes de embrião humano. O autor dessa proposição é o senador Eduardo Girão (Novo-CE), um ativista pró-vida e integrante da Frente Parlamentar Evangélica no Senado.

 

O terceiro caso trazido pela deputada talvez seja o que mais causa temor nas bancadas evangélica e católica. Em 2019, o STF entendeu que houve omissão constitucional do Congresso Nacional por não criar uma lei que criminalizasse atos de homofobia e transfobia. Nesse sentido, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 determinou que esses atos são incluídos como crime na Lei do Racismo. Na época, a FPE publicou uma nota de repúdio, dizendo que “direitos fundamentais de liberdade de expressão e liberdade religiosa foram restringidos para a grande maioria da população que optou por orientação sexual diversa da escolhida pelos Ministros do STF”. 

 

Durante o seu discurso, Tonietto trouxe outros casos, que também foram rememorados pelos demais deputados que votaram “sim” nas propostas mencionadas aqui. Quem acompanhou as cerca de 8 horas de discussão e votação dessas propostas legislativas observou o quanto o Congresso Nacional está determinado a impedir que as minorias não representadas o suficiente na Câmara e no Senado tenham seus direitos garantidos pelo bom senso dos guardiães da Constituição. 

 

A PEC 8/2021, por exemplo, já foi aprovada no Senado com 318 votos favoráveis e recebeu apenas 61 contrários. Na enquete disponível no site da Câmara dos Deputados, 87% das pessoas que votaram concordam totalmente com a PEC. Pela amostra que tivemos na CCJ no último dia 9, é bem possível que seja aprovada pela maioria dos deputados federais também. Se isso realmente acontecer, decisões como a do Ministro Marco Aurélio, que já tomou decisão monocrática de reconhecer união homoafetiva por entender que a evolução do direito deve acompanhar as transformações da sociedade, não poderão mais ocorrer. 

 

Certamente, a mobilização dos parlamentares pela aprovação do pacote “anti-STF”, que também versa pelo impeachment de ministros, está relacionada a decisões recentes do Supremo. Entre elas, a de 17 de maio deste ano, quando o Ministro Alexandre de Moraes suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe a utilização de assistolia fetal para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro. A assistolia é uma técnica que utiliza medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto, antes de retirá-lo do útero. Inclusive, foi essa decisão de Moraes que motivou o PL 1904/24 – de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante –, que aguarda despacho do Presidente da Câmara dos Deputados.

 

Os conservadores que pedem o fim da “ditadura do STF” acreditam que a sociedade precisa se conformar com o voto da maioria do conjunto de deputados e senadores, uma vez que vivemos numa democracia. O problema é que, por essa maioria, a criança de Santa Catarina que engravidou aos 10 anos após ter sido estuprada, em 2022, teria prosseguido com a gravidez. Na ocasião, a família precisou lutar na justiça para conseguir realizar o aborto legal, pois o feto já tinha mais de 22 semanas quando a mãe descobriu que a filha estava grávida. No meio desse processo, a primeira juíza que atendeu o caso negou o aborto legal e tentou convencer a menina a esperar mais um pouco para conseguir tirar o feto com vida. Após recomendação do MPF, a menina conseguiu interromper a gestação. Se não tivermos um STF com poder para decidir nesses casos, qual será o resultado?

 

O conservadorismo moral e religioso de grande parte da sociedade quer passar por cima das liberdades individuais. Se formos depender do legislativo para oferecer o mínimo de justiça e dignidade a vítimas de estupro e a casais de pessoas do mesmo sexo que lutam pelo reconhecimento de sua união, nunca chegaremos a uma sociedade igual e justa, como preza a Constituição. O próprio ministro Gilmar Mendes declarou à imprensa na semana passada que estaríamos vivendo o mesmo contexto da Era Vargas, quando decisões do Supremo foram cassadas. Há quem diga que se faz alarmismo sobre a atuação da bancada evangélica na esfera pública, mas é da ação conjunta desses deputados e senadores que se abre a possibilidade de uma criança ser obrigada a ser mãe em nome da preservação da vida desde a concepção. Diante desse cenário, quem vai impedir a restrição de direitos em nome de Deus? Se tomarmos como pressuposto as últimas reuniões na CCJ, nem mesmo o STF.


   *Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Michelli Possmozer é Doutora em Sociologia Política, Mestra em Ciências Sociais e graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Possui experiência como repórter de jornal impresso, comunicação institucional e pesquisas nas áreas de Religião e Política, Sociologia Urbana, Sociologia da Violência, Desenvolvimento Urbano e Políticas Públicas.