A aliança dúbia de Maduro com os evangélicos: benesses aos aliados e perseguição aos opositores

A aliança dúbia de Maduro com os evangélicos: benesses aos aliados e perseguição aos opositores

Quem assistiu ao “Encuentro con Pastoras y Pastores cristianos”, que ocorreu no dia 6 de março deste ano, no estado de Carabobo, na Venezuela, certamente pensou que Nicolás Maduro selou uma aliança com os evangélicos e que, portanto, ele possui apoio de todo este segmento ou, ao menos, de grande parte dele. Ao visitar as redes sociais do presidente venezuelano, é possível ver vários vídeos e fotos dele reunido com pastores e pastoras locais, além de notícias sobre os diversos benefícios e programas assistenciais que ele tem criado especificamente para os evangélicos. Mas o que não está posto é o caráter dúbio dessa relação. Os líderes religiosos que aceitam a ajuda do governo precisam declarar apoio a Maduro e até aqueles que não o fazem explicitamente, pelo simples fato de aceitarem ajuda por meio da adesão aos programas, são registrados como situação. Por outro lado, quem de alguma forma se opõe às ações do governo são perseguidos e punidos com entraves burocráticos para realização de suas atividades religiosas, interceptações telefônicas e até prisões.

No vídeo do evento que ocorreu em março, dá para ver que Maduro representou muito bem o papel de um governante que está nesse cargo porque é essa a vontade de Deus. No seu discurso, o presidente venezuelano declarou a sua admiração pelos pastores e chegou a dizer que se um dia ele desejar exercer alguma outra função, ele irá escolher ser um pastor. E que, inclusive, o resultado das eleições do dia 28 de julho de 2024 seria a vontade de Deus sobre o seu destino. Que o candidato vitorioso nas urnas seria, portanto, o escolhido de Jeová para comandar a nação. Segundo divulgação oficial, este encontro com líderes cristãos contou com a participação de pastores e pastoras de 23 estados e reuniu cerca de 17 mil fiéis. Durante os cerca de 90 minutos de cerimônia, oito líderes religiosos se pronunciaram e oraram por Maduro, referindo-se a ele como “o cabeça da nação” e “um homem elegível e ungido pelo senhor Jesus Cristo”.      

As vozes dos evangélicos declarando apoio e submissão ao governo fazem parte do teatro dirigido por Maduro. Na cena real, pastores que não concordam com o regime do presidente venezuelano são silenciados e perseguidos. Este é o caso de um pastor venezuelano que já realiza um trabalho missionário no país há 25 anos. Eu consegui uma entrevista com ele esta semana por meio da organização cristã internacional Portas Abertas, que apoia igrejas que sofrem perseguição religiosa em mais de 60 países. O pastor não quis ter a sua identidade revelada e concedeu a entrevista em meio a um momento bastante turbulento no país, após a vitória questionável de Nicolás Maduro nas urnas, no último dia 29. Os últimos acontecimentos e a instrumentalização da religião pelo governante venezuelano deixaram evidente que ele está disposto a lançar mão de todos os recursos possíveis e – ao que tudo indica – até dos que beiram a ilegalidade para se manter no poder. 

Segundo esse pastor, existem mais de 20 denominações evangélicas no país, sendo que as Assembleias de Deus são as mais comuns. Maduro iniciou uma tentativa de aproximação com o segmento evangélico em dezembro de 2022, quando criou o “Bônus Bom Pastor”, um auxílio de 360 bolívares, o equivalente a 14,7 dólares. Em seguida, o governo criou o programa “Sua Igreja bem equipada”, que fornece mobília, equipamentos e materiais necessários a igrejas, como cadeiras, instrumentos musicais, equipamentos de som e materiais educativos. E também o “La Iglesia Tricolor”, que apoia a manutenção da infraestrutura das igrejas. Além desses programas, o governo também criou alguns subsídios, como serviços de assistência social, educação e saúde nas comunidades atendidas pelas igrejas, além de integrá-las a programas sociais para que sejam atendidas na distribuição de alimentos e medicamentos.

O entrevistado disse que esse assistencialismo não foi muito bem recebido pelas lideranças evangélicas no início, quando a crise econômica não estava tão severa e as igrejas conseguiam se manter sozinhas. Mas à medida que a situação da economia no país se agravou, alguns pastores começaram a aceitar a ajuda governamental, ocasião que foi muito bem aproveitada por Maduro, que registrou as igrejas cadastradas nesses programas como apoiadoras do governo. De acordo com os relatos do pastor, isso acabou criando certo conflito entre as igrejas, pois aquelas que discordam do Estado rompem os vínculos com aquelas que aceitam a ajuda governamental. 

No entanto, aceitar ajuda governamental acaba não sendo uma escolha se o desejo do líder religioso é não sofrer represálias. “Desde que o governo implementou esses programas, os ministros têm medo de aderi-los ou não, pois se sabe que é uma forma de controle ou monitoramento por parte do governo e aqueles que decidem não acessar esses planos têm dificuldade em realizar os procedimentos necessários para o funcionamento normal da congregação. Quando eles vão a um conselho comunal ou paroquial para pedir permissão para operar a congregação, eles perguntam se você está ou não em algum programa estabelecido pelo governo e, se você disser não, isso pode gerar atrasos em tais pedidos ou complicar o processo”, relatou o pastor perseguido.

As consequências para os pastores que decidem ser oposição são graves: fechamento de igrejas ou negócios, prisões, vigilância e até interceptação telefônica. A partir desse cenário, já dá para duvidar se os religiosos que se cadastram para receber esses benefícios apoiam de fato o governo ou os aceitam apenas por se sentirem coagidos. O entrevistado afirmou que é uma minoria evangélica que apoia Maduro, mas a imagem que se transmite é o contrário. O evento do dia 6 de março é um exemplo da encenação de que o governo teria um pacto de ajuda mútua com todos os evangélicos, como Maduro deu a entender ao afirmar durante o evento que “as igrejas estão para ajudar o povo e nós para ajudar as igrejas”. 

Nas palavras do pastor entrevistado: “esse evento foi realizado no centro do país, mas apenas pastores de algumas denominações compareceram. Alguns participaram sem saber a que atividade iriam (apenas porque o governo lhes pediu que fossem) e outros abusaram deliberadamente da sua autoridade na sua denominação e levaram aqueles que estavam sob sua autoridade. Acredita-se que 25% a 30% da igreja evangélica apoia o atual governo".

O mesmo país onde o governo corteja os evangélicos em troca de apoio político está na 67ª posição no ranking de países que perseguem grupos religiosos. Segundo informações disponíveis no site da organização Portas Abertas, há denúncias de que jovens mulheres são vítimas de tráfico de pessoas pelo fato de serem consideradas puras, o que eleva o valor delas nesse mercado ilegal. Ainda de acordo com essa instituição, as lideranças religiosas têm medo de denunciar as violações aos direitos humanos e casos de corrupção do governo por medo das represálias, que também podem ocorrer na forma de impedimento a acessar serviços públicos, alimentação e cuidados médicos. E agora, após o resultado duvidoso que deu a vitória a Maduro, cristãos que se opõem ao governo temem que o quadro de perseguição se agrave ainda mais.

O que vem ocorrendo na Venezuela, com a instrumentalização da religião para fins políticos, não é uma novidade em épocas de eleições. No Brasil mesmo podemos observar o uso escancarado do discurso religioso como estratégia para conquistar votos, como ficou claro no slogan de campanha de Bolsonaro “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” e na utilização do versículo bíblico de João 8:32 pelo candidato: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. No caso brasileiro, a religião foi instrumentalizada junto aos eleitores religiosos por meio do discurso. No caso da Venezuela, o assistencialismo e a coação parecem ser os principais recursos.

Com relação às lideranças que aparentemente estão ao lado de Maduro, como o bispo Ronaldo Santos, que é responsável pela Igreja Universal do Reino de Deus na Venezuela, há interesses corporativos. Segundo noticiou o The Intercept Brasil, em matéria publicada no dia 19 de março deste ano, a Universal declarou apoio a Maduro visando à obtenção de concessão de TV. A posição da instituição comandada por Edir Macedo no Brasil foi vista pelos veículos de imprensa como contraditória, tendo em vista que a igreja adota o discurso de ser oposição à esquerda.  

Na minha avaliação, não há contradições. Primeiro porque o regime de Maduro não pode ser considerado de esquerda. Um governo ditador, que oprime a população e adota uma política assistencialista como estratégia eleitoreira não se encaixa em uma ideologia política que preza pela justiça social. Segundo, a relação entre Política e Religião sempre foi atravessada pelos interesses econômicos e corporativos das igrejas. Foi assim na época do governo Sarney – quando a bancada evangélica apoiou o presidente em troca de concessões de rádio e TV – e talvez o quadro se repita no governo de Maduro, caso ele permaneça no poder. E enquanto os acordos entre religiosos e governantes são feitos nos bastidores da cena política, candidatos são eleitos com a benção de pastores e cidadãos são oprimidos pela politização de sua fé, como é o caso da Venezuela.  


Michelli Possmozer é Doutora em Sociologia Política, Mestra em Ciências Sociais e graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Possui experiência como repórter de jornal impresso, comunicação institucional e pesquisas nas áreas de Religião e Política, Sociologia Urbana, Sociologia da Violência, Desenvolvimento Urbano e Políticas Públicas.